Vamos precisar de mais professores e temos que os formar bem: não podem ser mercenários!

Há que recuperar o orgulho social e familiar da profissão docente, com base no valor que merece esta verdadeira e nobre missão. Sem investimento (incluindo político e económico) proporcional, não se conseguirá nada.

Há seis anos, neste mesmo jornal, chamei à atenção para a necessidade de rejuvenescer as salas de professores das escolas portuguesas. De lá até hoje, a situação foi-se agudizando e tornou-se uma evidência insustentável. Entretanto, contas elementares apontam para uma necessidade incontornável de mais docentes. Mesmo com abaixamentos demográficos na população estudantil portuguesa, as aposentações em massa de um corpo vasto de professores adivinham carências significativas no curto e no médio prazo. As universidades portuguesas estão avisadas e começaram a trabalhar para reabrir e robustecer os cursos de formação de professores, num entrelaçado complexo de missão e estratégia (ainda assim tardia), à mistura com o ‘acordar para o mercado’ de estudantes interessados, futuros professores, que aí vem...

Importa refletir e agir para qualificar esta nova leva de formação de professores, mais ou menos explosiva. Nos anos 80, aconteceu-nos esta mesma necessidade de formar rapidamente e em massa (fazendo as contas, são agora estes professores que se vão aposentando). Foi, na altura, o possível, mas tal circunstância trouxe alguma insuficiência formativa, que explica algumas das fragilidades do sistema educativo.

Ainda que telegraficamente, alinho abaixo algumas ideias que poderiam ser tidas em conta pelas universidades, pelos potenciais candidatos, pela sociedade e pelas famílias, mas, de forma mais relevante, pelo Ministério da Educação.

1. Saber ensinar e saber a arte que se ensina

Há uma tensão longínqua, sempre inacabada, sobre as competências principais de um bom professor. É consensual, hoje em dia, que importa tanto saber a ciência ou os conteúdos que propomos, como as técnicas e envolvências para os saber verter no dinamismo de ensino-aprendizagem. O processo educativo tem hoje complexidades radicalmente porosas e abertas, que pedem aos futuros professores uma enorme robustez conceptual, mas, ao mesmo tempo, domínio das respetivas didáticas e amparos das ciências da educação. A maioria dos curricula em formação de professores já apresentam um equilíbrio razoável face a esta dicotomia, mas convém avaliar e monitorizar, para garantir tal equidade. Na escola, um professor que saiba muito bem a ciência que ensina estará bloqueado e infecundo se não a souber comunicar e articular com múltiplos fatores. Por outro lado, por mais bem formado que seja nos domínios pedagógicos, estará vazio de inteireza e igualmente inerte, o docente que não souber e não aprofundar a arte que ensina.

2. Estágios realmente escolares

É preciso voltar a criar condições nas escolas para um efetivo estágio pedagógico. Este é o ponto mais pragmático e mais decisivo para a requalificação da formação de professores e, carecendo de um investimento político e económico, implica mais e melhores recursos humanos. Hoje em dia, os estágios pedagógicos nas escolas não dão ao estudante-em-formação-futuro-professor condições reais de lecionação, autonomia e proatividade criativa. Ao contrário do que já aconteceu nos antigos modelos de formação de professores, os atuais estagiários não têm turmas a si atribuídas nem outras funções de dignidade pedagógica associadas. Participam, a espaços, em turmas do orientador cooperante (agora assim chamado e não orientador de estágio), mas têm obviamente que se sujeitar ao estilo didático do professor cooperante numa quase artificialidade educativa. Os ensaios didáticos são muito limitados. Mais grave ainda: o estímulo aos professores cooperantes é quase zero (não se reduzem dignamente as horas semanais no horário), deixando assim um vazio de candidatos a professores cooperantes motivados e competentes. E como é decisivo ter bons professores cooperantes! Só pode ter havido uma motivação de poupança económica para este definhamento do modelo e, em nome da qualidade mínima, é um aspeto a mudar urgentemente. 

3. Horizontes largos...

O professor do século XXI não é monodisciplinar. Em particular, no caso dos professores das chamadas ciências exatas e experimentais, é fundamental uma ligação às Humanidades e ao todo cultural onde está e onde vai estar o aluno em formação. Este dinamismo “inter, trans e pluridisciplinar tem necessariamente que fazer parte dos horizontes do futuro professor e, como tal, dos planos formativos. Acrescem ainda algumas outras aptidões transferíveis e estratégia alargada, pois não há professorado realizado e realizável sem se ver mais além do que o curto prazo e do que a estreiteza da compartimentação. Há que valorizar o professor como cumpridor, mas livre-pensador, estimulante e estimulado diante da pergunta, da dúvida, da crítica e da construção colaborativa de um mundo melhor.

4. Orgulho em ser professor

Para as famílias e para a sociedade, ser professor tem que ser reabilitado no seu papel social. Lamento profundamente que o estatuto socioprofissional da atividade docente tenha caído tanto. O papel e potencial que tem na capacidade de mudar o mundo mereciam o contrário, precisamente a dignidade e revalorização docente. Muitos de nós reconhecemos, mesmo que criticamente, a (pseudo)promoção social e familiar que pode ter ‘um dos nossos em medicina’. Acontece que um olhar mais profundo reconhecerá que os alavancamentos mais prósperos numa qualquer sociedade se jogam no tabuleiro da educação e, por isso, na escola. Há que recuperar o orgulho social e familiar da profissão docente, com base no valor que merece esta verdadeira e nobre missão. Sem investimento (incluindo político e económico) proporcional, não se conseguirá nada.

5. Instrumentalizar uma profissão como mero emprego

Preocupa-me sobremaneira um perigo iminente, que pode mimetizar pela negativa o processo de formação de professores em massa dos anos 80, no seu ângulo mais sombrio: o mercenarismo. Porque há emprego, então vamos ser todos professores... Pelo que escrevi acima, torna-se claro que esta não é, apesar de tudo, uma profissão para qualquer um. Haver perspetivas de empregabilidade é estimulante, mas caberá aos decisores políticos e à gestão universitária realizar um filtro sábio de genuínas vocações, à entrada e durante os cursos de especialização, tendo a coragem de efetivamente peneirar (e porventura excluir) candidatos de perfil mais duvidoso. A educação é uma missão tão nobre quanto complexa e exigente. É fascinante, mas precisa de uma vocação muito própria. Na escola, não há lugar para (novos?) mercenários!...

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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