A moeda digital e as perplexidades quanto ao futuro do sistema bancário

Imaginar que a moeda digital do banco central é uma ameaça para o sistema financeiro tal como o conhecemos é lançar um olhar quixotesco sobre a evolução dos meios de pagamento, e ver gigantes onde há apenas moinhos de vento.

Os meios de pagamento e os instrumentos financeiros em geral sofreram, ao longo de séculos, uma evolução nos seus suportes físicos, que se acentuou muito significativamente com a entrada na era digital. A mudança no suporte físico dos meios monetários não alterou a sua natureza económica essencial, que é a de servirem como meio de pagamento aceite de forma generalizada, com ou sem imposição legal, como contrapartida em todas as transacções. O valor da moeda nos sistemas monetários metálicos estava associado ao valor do metal usado na sua fabricação, ainda que o valor de cunhagem fosse superior àquele. A emissão de notas de banco e a criação de depósitos à ordem, por sua vez, está ligada aos activos que os bancos adquirem no processo de emissão dessas formas de moeda. No caso das notas, emitidas pelos bancos centrais, as principais contrapartidas são os títulos da dívida pública, adquiridos por financiamento directo do governo ou em operações de mercado, e o refinanciamento dos bancos de segunda ordem. Estes, por sua vez, criam depósitos à ordem quando concedem crédito a empresas e particulares.

Se tentarmos avaliar a evolução dos instrumentos monetários ignorando que, por detrás da sua criação, estão outros activos que lhe servem de contrapartida, somos conduzidos a previsões infundadas sobre as possíveis ameaças que a evolução das formas da moeda virá a ter sobre o sistema financeiro. Foi na exploração dessa ignorância que se apoiaram os promotores das chamadas criptomoedas quando propalavam que estas iriam substituir os meios de pagamento convencionais. O desconhecimento dessa ligação tem também conduzido a opiniões erradas sobre os efeitos da criação de moeda digital pelos bancos centrais, segundo as quais esta levará os bancos de segunda ordem a ficarem sem depósitos à ordem e, por isso, desprovidos de meios para concederem empréstimos. Nenhuma destas duas hipóteses tem fundamento, e muito menos o nexo que se pretende estabelecer entre ambas.

Mas, antes de analisarmos esse ponto de vista, convém esclarecer que a moeda digital já existe: os depósitos à ordem, disponíveis para os particulares e as empresas não financeiras, são moeda digital. Os bancos centrais também já emitem moeda digital, que está disponível apenas para os bancos de segunda ordem. A criação, pelos bancos centrais, de moeda digital posta à disposição de particulares e empresas não financeiras, num processo conhecido pela sigla CBDC (Central Bank Digital Currency) de retalho, tem vindo a ser estudada há vários anos. Um dos objectivos desse projecto é a inclusão financeira de pessoas de rendimentos baixos, questão que ganhou maior acuidade com a pandemia. Outros objectivos importantes da CBDC são o aumento da eficiência do sistema de pagamentos, dado que este modelo permite melhorar o ajustamento da quantidade de moeda emitida pelo banco central à sua utilização na economia, e facilitar a prossecução de objectivos de política monetária, como o de contrariar processos inflacionistas em economias em que a moeda emitida pelo banco central ainda tem um peso elevado nos pagamentos efectuados pelos particulares e empresas não financeiras.

Paralelamente, alguns bancos centrais estão também a estudar a criação de um sistema de CBDC por grosso, destinado apenas aos bancos de segunda ordem, e que servirá essencialmente para renovar sistemas de pagamentos interbancários que estejam obsoletos. A inclusão da CBDC por grosso na agenda da digitalização da moeda emitida pelo banco central demonstra que são infundados os receios de que está a caminho um sistema de pagamentos totalmente dominado pelos bancos centrais, os quais, enquanto entidades ligadas ao Estado, passariam a conhecer todos os nossos pagamentos, dos quais os outros bancos iriam ficar arredados. Não é nada disso que está em perspectiva, mas apenas a digitalização de grande parte da moeda emitida pelos bancos centrais.

Ainda por cima, o modelo com mais probabilidade de ser aplicado é um modelo indirecto, em que empresas privadas farão a intermediação entre os bancos centrais e os utilizadores da CBDC.  A implementação deste meio de pagamento é de grande complexidade técnica, pelo que os estudos efectuados têm levado, até ao momento presente, os bancos centrais envolvidos no projecto a incluí-lo apenas nos seus planos a médio prazo, mas não nos de curto prazo e, em alguns casos, como o do Canadá, só como plano de contingência. Só um número limitado desses bancos centrais levou a cabo experiências piloto, de que são exemplos a Suécia e as Bahamas.

Naturalmente que, dentro de alguns anos, a CBDC de retalho irá surgir tanto em economias avançadas como em economias emergentes, servindo nestas como meio de compensar a baixa utilização de serviços bancários. Na maior parte das economias, tornar-se-á normal que, para além de depósitos à ordem nos bancos de segunda ordem, os particulares e as empresas passem também a deter um saldo em CBDC. Um pequeno montante em notas e moedas continuará a andar nas nossas carteiras por mais algum tempo, pois as oportunidades para as utilizarmos não vão desaparecer de um dia para o outro.

Mas, para quem quiser insistir na pergunta, e se chegar um dia em que todos utilizamos moeda digital do banco central em vez de depósitos à ordem nos outros bancos, estes vêem-se desprovidos da capacidade de financiar a economia e desaparecem? Dado que os depósitos à ordem são apenas uma parte das fontes de financiamento dos bancos, num cenário improvável em que eles fossem reduzidos a zero, os bancos não ficariam totalmente desprovidos de capacidade de financiar a economia.  A parte que os depósitos à ordem representam no seu financiamento é bem menor do que o conjunto das restantes, constituído por depósitos a prazo, refinanciamento do banco central, instrumentos de dívida de curto prazo, obrigações e outros instrumentos de dívida a médio e longo prazo, e ainda o capital.

De qualquer forma, o desaparecimento dos depósitos à ordem não reduziria a capacidade de concessão de crédito pelos bancos? Se a CBDC viesse a dominar totalmente o sistema de pagamentos, fazendo desaparecer os depósitos à ordem nos bancos, o aumento do refinanciamento junto do banco central seria o meio imediato de compensação para o desaparecimento desses depósitos, havendo, posteriormente, um reajustamento gradual entre todas as fontes de financiamento. É impensável acreditar que, se essa situação limite ocorresse, o banco central iria, de forma perversa, aproveitar o momento de transição para estrangular os bancos de segunda ordem e, consequentemente, causar danos a toda a economia.

Por isso, imaginar que a moeda digital do banco central é uma ameaça para o sistema financeiro tal como o conhecemos é lançar um olhar quixotesco sobre a evolução dos meios de pagamento, e ver gigantes onde há apenas moinhos de vento.

Professor universitário e economista

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