Proteger-se do delírio

O trabalho protege-nos do delírio, diz Simone Weil. Porque nos obriga a confrontarmo-nos com a nossa condição de humanos. O futuro do trabalho é obviamente também o futuro da sociedade.

“O trabalho é uma escola da razão; ao confrontar-nos com a realidade, protege-nos do delírio.” Como sempre, Simone Weil é luminosa. A sua obra inspira tanto cientistas sociais quanto o mundo da arte, como testemunha o recente concerto do Teatro Nacional de São Carlos, intitulado “La passion de Simone”. Vou neste artigo olhar para o futuro do trabalho, no contexto da transição digital, à luz da frase de Simone Weil já citada e desta outra: “O trabalho manual deve estar no centro da sociedade.” O pensamento ilumina, o pensamento como graça.

O desgraçado Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho

O Livro Verde, atualmente em discussão em sede de concertação social, tem reflexões muito importantes; vale a pena lê-lo. Mas falta-lhe, a meu ver, uma visão do futuro que pode resultar de uma transição digital não devidamente regulada. É dito logo na segunda página que se pretende “preparar a sociedade para os desafios que decorrem das transformações a que temos vindo a assistir”. Presume-se então que essas transformações resultam de processos – mercados competitivos, decisões dos grandes grupos tecnológicos – que não podemos controlar e aos quais nos devemos adaptar? Ou podem e devem os governos nacionais e os órgãos da UE orientar as transições verde e digital?

Já se percebeu que a transição digital está a produzir um mundo do trabalho polarizado. Os trabalhadores mais instruídos ficam a teletrabalhar sentados em casa enquanto outros trabalhadores asseguram a logística, transportando comida e fornecendo bens e serviços comprados nas plataformas, tratando dos doentes e dos idosos, limpando as ruas e renovando os prédios. A novidade é que a ancestral divisão entre os que pensam/decidem e os que executam e servem é hoje acompanhada por uma separação do espaço físico. As tecnologias digitais permitem que uns trabalhem em isolamento social, distanciados fisicamente dos que trabalham com o corpo, sendo estes últimos os “trabalhadores essenciais” que mantiveram a sociedade a funcionar durante a pandemia. Esta redução das interações físicas, pessoais, em que o outro desaparece, pode acentuar a subvalorização do trabalho manual e relacional, característica escandalosa das nossas sociedades. Os estudos sobre polarização do emprego mostram como os salários destas profissões têm diminuído relativamente aos das profissões intelectuais. É aqui que entra a segunda frase de Simone Weil: o trabalho manual no centro da sociedade. Voltaremos a ela.

O futuro que queremos

Os colossais programas de relançamento nos EUA e as medidas europeias de layoff e de manutenção do rendimento/poder de compra geraram resultados económicos que surpreendem todos os economistas; a aplicação a uma escala nunca antes vista da clássica receita keynesiana está a dar resultados inesperados. Um facto em particular merece atenção: em Portugal, o PIB em 2020 diminuiu 7,7%, enquanto as horas trabalhadas diminuíam cerca de 20%. Parece assim que não é necessário trabalhar tanto; a economia funciona à mesma com menos trabalho, basta que o Estado mantenha o poder de compra a níveis elevados. Os defensores do Rendimento Básico Universal podem argumentar que as suas previsões estão certas: o facto de haver pessoas a receber rendimento sem trabalhar aumenta a liberdade individual sem prejudicar a economia. Para além do problema que representa o endividamento público associado a estas medidas, coloca-se uma questão para mim mais fulcral: a de sabermos qual o lugar que queremos dar ao trabalho, na vida dos indivíduos e na organização da sociedade.

O trabalho protege-nos do delírio, diz Simone Weil. Porque nos obriga a confrontarmo-nos com a nossa condição de humanos. Ao trabalhar, temos de nos confrontar com a realidade, com a natureza, com os outros. Trabalhar significa sempre, independentemente da profissão e das funções, fornecer esforço e vencer obstáculos. É assim que cada um de nós obtém o seu sustento e satisfaz as suas necessidades. E a pandemia mostrou-nos que são os trabalhadores que trabalham com o corpo, que tratam das necessidades dos nossos corpos, que são os trabalhadores essenciais. São também eles que se confrontam com a realidade concreta e não apenas com o mundo das ideias. Por isso o trabalho manual é, para Simone Weil, de uma “qualidade superior”: ele protege-nos mais do delírio do que o trabalho que pode ser realizado em teletrabalho, sem contacto com o mundo físico.

O futuro do trabalho é obviamente também o futuro da sociedade; por isso falei acima dos riscos de polarização social e cultural que podem resultar de um futuro do trabalho não controlado. Centrar a nossa reflexão sobre a importância do trabalho e, em particular, do trabalho manual, dar a todos a possibilidade de contribuírem para o bem comum com o seu trabalho, reconhecer e fornecer condições de vida e de trabalho dignas aos trabalhadores manuais; isso sim seria preparar um futuro socialmente sustentável e mais solidário.

Não quero aqui cair numa apologia delirante, irracional, do trabalho. Como advertiu Hannah Arendt, essa outra grande filósofa do trabalho, não devemos construir uma sociedade de trabalhadores-consumidores; é também preciso contemplar. Contemplar é uma necessidade vital da alma, diria Simone Weil. Mas é delirar pensar que se pode melhorar a sociedade sem melhorar o mundo do trabalho.

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