Suave calamidade?

A suave (?) aterragem na Calamidade foi um desastre que não esqueceremos, mais uma expressão da falência de serviços e instituições públicas na sua missão de, em tempo oportuno, identificar os problemas, agir com seriedade, determinação e rigor. Não se sabia o que se passava no Alentejo litoral? E é só lá? Porque não se agiu?

1/Maio/2021: data desejada, não só pelo seu significado tradicional do Dia do Trabalho e do Trabalhador, mas pela esperança de suave entrada no novo estádio de prontidão e alerta da sociedade face a esta Pandemia.

Havia razões para Esperança. O sucesso global do programa de vacinação, apesar de contratempos imprevisíveis, desde a comunicação nem sempre fácil e directa com a comunidade – e quem trabalha na Saúde sabe como isso pode acontecer – às flutuações estratégicas sobre o uso de vacinas e ao esforço logístico significativo necessário à concretização do programa. Está a correr bem, exemplar mesmo, e é espelho duma realidade: o Estado e as suas instituições funcionam quando se situam acima das fidelidades partidárias, do funil ideológico e privilegiam a meritocracia. Isto é, quando o seu esprit de corps e a sua Cultura de serviço público resistiram, prevalecendo sobre a razia partidocrática que minou a nossa Administração Pública. As Forças Armadas têm sido, neste contexto como noutros, exemplares.

Como professor jubilado da Faculdade de Medicina e espectador empenhado, fui dando conta, desde o início da pandemia, de dúvidas, perplexidades e sugestões. Dever de cidadania que a compreensão do editor e uma imprensa livre tornam possível. Neste combate – porque de facto é de um combate que se trata contra o adversário mais letal que defrontámos nas últimas décadas – faltou desde o início a visão, a estratégia e a organização que, para além das barreiras ideológicas e partidárias, mobilizasse competências, vontade e recursos para este desafio colectivo.

Calamidade é, pois, o novo paradigma como o próprio vocábulo sugere, como se o desastre fosse permanente, inevitável, marcado nos astros, ADN da nossa incapacidade para avaliar com rigor e isenção e planear o Futuro. A dureza da Verdade que sub-repticiamente vem à tona na ilusão do sucesso e contamina a Esperança no novo caminho que se configura desejável e talvez possível. Prevaleceu a sagacidade do legislador, num Tempo de equívocos que substituem a frontalidade e o dever da Verdade. Daí o título e a interrogação.

A Pandemia teve um mérito notável. Em primeiro lugar, evidenciou o que há de melhor na sociedade portuguesa, como o distinto Amigo, Eduardo Marçal Grilo, nos relembrava no seu comentário público: a solidariedade, a mobilização de jovens para iniciativas de apoio às populações em dificuldades, a dedicação e coragem de tantos, dos serviços de Saúde às instituições de Solidariedade Social, e que no seu conjunto são um farol de Esperança. E recordo, como aliás escrevi oportunamente, a coragem, determinação e competência dos meus colegas, que na linha da frente fizeram o seu melhor para tratar, consolar e curar se possível, em clara oposição aos que procuraram através da mediatização da tragédia retirar outros dividendos. Se é que o distanciamento de análise é possível, os médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares, os profissionais de Saúde nos serviços públicos, e privados, nas instituições de Solidariedade Social, estiveram à altura do seu dever ético e profissional e da obrigação moral de fazer bem, o Bem! Como na Educação, onde o sistema escolar conseguiu montar programa de ensino à distância que funcionou, mobilizou o interesse dos alunos, não obstante as dificuldades, as promessas de apoio não concretizadas, as carências expostas. Prevaleceu a Cultura das Profissões, o seu esprit de corps que é bem mais rico e complexo que o seu corporativismo, o qual é indispensável à defesa da Qualidade e dos meios de intervenção necessários em cada Profissão.

Mas a outra face da moeda foi terrível e não pode nem deve ser ignorada. Insuficiências, impreparação, visão e acção política condicionadas pelo funil ideológico e partidário, a reboque das circunstâncias e dos factos, em vez de dimensão nacional mobilizadora dos recursos e de estratégia clara, determinada e coerente. Os sobressaltos que vivemos – e que poderiam ter sido evitáveis ou minorados na sua dimensão trágica – foram a expressão dessa incapacidade. E este é o Tempo para a avaliação isenta, exigente e com consequências de que a Cidadania não pode nem deve abdicar.

A suave (?) aterragem na Calamidade foi um desastre que não esqueceremos, mais uma expressão da falência de serviços e instituições públicas na sua missão de, em tempo oportuno, identificar os problemas, agir com seriedade, determinação e rigor. Não se sabia o que se passava no Alentejo litoral? E é só lá? Porque não se agiu? Será que existe um País que ignoramos ou não queremos ver? Reedição dos tempos duros da Casa da Malta de Fernando Namora, que me veio à memória nesta aterragem na realidade.

Que teia de interesses prevaleceu e tolheu a defesa da dignidade do Trabalho e dos Trabalhadores, o respeito pelas Pessoas, a imagem do País e da Sociedade e também sobre os interesses legítimos duma actividade económica legal, produtiva e importante para a Economia? Não teria sido possível actuar preventivamente, organizar e antecipar ocorrências? A Medicina do Trabalho existe apenas para o conforto das inspecções nas unidades fabris e comerciais modernas e nos grandes centros? Já não é parte da Saúde Pública? Não interessa? Este é mais um exemplo de negacionismo e ignorância de decisores esquecendo o que se passara em Singapura há um ano, quando o regresso dos trabalhadores sazonais alojados em contentores desencadeou segunda vaga da pandemia. É também produto da indiferença à sorte dos milhares de trabalhadores migrantes que nas Américas, Europa e Ásia vagueiam para bem e tranquilidade do mundo mais desenvolvido, desempenhando as tarefas que os nativos já não querem fazer ou consideram indignas e às quais a robotização ainda não chegou. Que mundo e que sociedade criámos com o nosso egoísmo e indiferença?

A intervenção policial armada e com cães para de madrugada conduzir uma operação de realojamento serviu para alguma coisa, senão para desrespeito e mal-estar? De quem foi a responsabilidade? E que governo central pode invocar a falta burocrática de notificação, para ignorar uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo?

O que se revelou foi o estado calamitoso de serviços e responsáveis públicos, a sua indiferença à realidade – nenhum responsável, político ou administrativo, que reclamou intervenção se demitiu perante a inoperância das suas denúncias –, bem como a incapacidade do Governo central e local de se antecipar aos problemas, agir com consequência, eficácia e respeito pelos cidadãos. E que pensar do silêncio cúmplice da Oposição, com uma ou duas excepções que chegaram ao espaço público, mas os outros, que apareceram com a sua indignação no local e perante as câmaras de televisão?

Marca de uma forma de acção política que nada tem a ver com o Bom Governo que em anterior artigo glosei a propósito do fresco de Lorenzetti em Siena, e que infelizmente prevaleceu neste combate com a Pandemia. Nem da boa Oposição, um trunfo e uma conquista das sociedades democráticas posteriores à República de Siena.

As excepções que mencionei são o produto de uma cultura profissional e de serviço público que prevaleceu perante a incompetência subserviente à partidocracia dominante, indiferente à meritocracia e à exigência. Escaparam à regra avassaladora de controle do Estado e das suas Instituições, aos silêncios cúmplices de quem não quer ver e finge não perceber!

Três notas finais. A primeira remonta há anos, ao rescaldo da tragédia dos fogos do Verão. Discutiram-se as insuficiências do sistema de detecção e de comunicação SIRESP, de imediato atribuídas ao governo anterior. Quatro anos depois, o que foi feito? Está o sistema preparado para uma contingência eventual – que ninguém deseja! – como a que aconteceu há quatro anos? Substituído por um melhor e mais seguro? A segunda, sobre a questão da libertação das patentes das vacinas, um assunto sério que não se deve compadecer com demagogia. Vacinar a maior parte da população mundial é um objectivo indeclinável. Mas como ontem bem tentaram explicar Miguel Castanho, distinto Professor e Investigador na minha Faculdade, e Peter Villax, um grande empresário inteligente e informado, a cadeia de criação de conhecimento e da sua defesa é complexa e o sistema de patentes uma necessidade. Será que se pretende a nacionalização da indústria farmacêutica em nome do interesse colectivo? Já esqueceram que em décadas de colectivismo nada de novo daí veio para a Medicina? E não haverá outro modo de conseguir o mesmo objectivo louvável e indeclinável, preservando a inovação científica, pública e privada, que tão importante foi agora? Recordo um distinto cirurgião norte-americano que, a propósito de uma intervenção cirúrgica para cuja indicação mais rigorosa também procurei contribuir, escrevia com lucidez não deitem fora o bébé com a água do banho!

A terceira, em declarações públicas que ouvi, responsável ministerial sugeriu a denúncia como meio para informação do Estado, esquecendo o dever e a responsabilidade da Administração Pública de se informar e conhecer a realidade. A denúncia anónima, la bocca de la veritá que na República de Veneza servia ao doge para informação e também para perseguição política aos adversários. Uma arma para o tempo português no século XXI?

Valha-nos a imprensa livre, ainda não domesticada, essa é a nossa esperança como cidadãos livres, empenhados, a bocca de la veritá, porque não é anónima, é verificável e accountable.

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