Patologias do coração: que desfecho em tempos pandemia?

Que patologias constituem um risco acrescido ou têm surgido devido à covid-19? A influência desta infecção no sistema cardiovascular tem sido amplamente divulgada. Maio é o Mês do Coração.

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Rui Gaudencio

A infecção por covid-19 foi inicialmente divulgada como uma doença de atingimento pulmonar. No entanto, à medida que fomos conhecendo melhor a patologia, percebeu-se que é uma doença sistémica que pode atingir praticamente todos os órgãos e funções do corpo. Os danos mais graves desta doença podem mesmo ser ao nível do coração.

As circunstâncias em que esta pandemia se desenvolveu, juntou todos os ingredientes necessários para afectar desfavoravelmente a abordagem das doenças cardiovasculares.

Em primeiro lugar, os doentes deixaram de ir aos hospitais. Mesmo na presença de sintomas graves e que devem ser avaliados o mais rapidamente possível, como dor no peito, palpitações, perda de consciência ou falta de ar, os doentes protelavam a ida ao serviço de urgência pelo medo de serem infectados. Outros, com doença cardiovascular conhecida, que viram as suas consultas de rotina serem adiadas por necessidade de reorganizar os cuidados de saúde.

Quem manteve a prática clínica durante este período, certamente reconhecerá que, nestes últimos 13 meses, os casos de enfarte agudo do miocárdio apareceram nos hospitais em fases muito mais tardias, onde o benefício do tratamento é menos expressivo ou inexistente. Consequentemente, começaram a reaparecer complicações que eram extremamente raras — como arritmias malignas e insuficiência cardíaca irreversível, e que podem causar a morte.

Houve, efectivamente, um retrocesso na eficácia e aplicabilidade de tratamentos, apesar das várias campanhas dinamizadas pelos profissionais de saúde através dos múltiplos canais de comunicação onde foi enfatizado o benefício da avaliação médica precoce comparativamente com o risco de infecção pelo coronavírus. Como divulgado pela Sociedade Europeia de Cardiologia, “os apelos para ficar em casa” durante a covid-19 não se aplicam aos ataques cardíacos.

Até aqui foram expostas fraquezas induzidas pela covid-19 e que influenciaram negativamente o desfecho de patologias cardíacas que já existiam antes da pandemia.

Mas colocando a questão ao contrário: que patologias constituem um risco acrescido ou têm surgido devido à covid-19? A influência desta infecção no sistema cardiovascular tem sido amplamente divulgada. Começando pelos factores de risco identificados que coincidem com os factores de risco para a doença cardiovascular como a diabetes, a obesidade e a hipertensão arterial. Além disso, a evolução da covid-19 também é reconhecidamente mais grave em pessoas com doença cardiovascular preexistente, por levar a um desequilíbrio de patologias que antes estavam compensadas, como arritmias, doença coronária e insuficiência cardíaca.

Segundo dados do Colégio Americano de Cardiologia, 40% dos hospitalizados com o novo coronavírus apresentavam alguma patologia cardiovascular.

Por fim, existem complicações cardiovasculares directamente provocadas pela covid-19. A que tem sido mais falada é a miocardite, uma lesão/inflamação aguda do músculo cardíaco e que pode atingir a sua contractilidade. Ao contrário das outras comorbilidades cardiovasculares já mencionadas, que são mais frequentes em doentes mais velhos, a miocardite atinge, muitas vezes, doentes jovens e previamente saudáveis. A sua presença está associada a pior prognóstico com maior necessidade de cuidados intensivos e maior mortalidade. Apesar de, na maioria dos casos, haver recuperação da função do músculo cardíaco, podem surgir casos graves com danos irreversíveis, predispondo ao aparecimento de arritmias e insuficiência cardíaca.

O tromboembolismo pulmonar (coágulos que causam obstrução da artéria pulmonar) é outra complicação cardiovascular potencialmente fatal e que, também, está associada à covid-19, devido a alterações da coagulação. É mais frequente em doentes graves hospitalizados, sobretudo em doentes nos cuidados intensivos onde a sua prevalência pode ser superior a 30%.

E quais os efeitos da covid-19 no coração após recuperação? Ainda não sabemos as consequências a longo prazo. Teremos de avaliar e acompanhar todos os doentes. Já se sabe que muitos permanecem sintomáticos, sendo o cansaço um dos sintomas persistentes mais frequentes.

A maior preocupação é o desenvolvimento de insuficiência cardíaca nas pessoas que tiveram atingimento cardíaco na fase aguda. Outra grande preocupação prende-se com o desenvolvimento de hipertensão pulmonar, uma patologia cardiovascular grave, de mau prognóstico e progressiva e cuja causa pode ser multifactorial.

Devem ser promovidas consultas especializadas que visem procurar activamente sequelas da infecção de forma a poderem ser identificadas e tratadas eficazmente. Devem ser realizadas as consultas de rotina das pessoas com doenças crónicas do coração que durante a pandemia foram sendo adiadas. É fundamental que estas patologias estejam bem geridas e compensadas, por isso atente que as unidades de saúde têm em curso protocolos e circuitos que garantem a segurança de todos, pelo que o receio da covid-19 não pode ser motivo para descurar da saúde do coração. E devem, sem falta, procurar ajuda médica, todas as pessoas que em algum momento sintam algum sinal de que o coração não está bem.

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