Ouvir vozes: não é normal, é humano

Há um aparente consenso de que ouvir vozes que outras pessoas não ouvem é, necessariamente, um problema, sinónimo não só de loucura, mas também de violência, servindo esse suposto perigo como justificação para que se usem todos os meios para as suprimir e/ou afastar a pessoa da vida em sociedade. O facto é que estas experiências são muito mais comuns e muitíssimo mais variadas do que imaginamos.

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Desde o início do confinamento têm corrido nas redes sociais várias imagens cuja mensagem se lê mais ou menos assim: falar com as plantas e animais de estimação é normal, preocupe-se só se começarem a responder. Apesar de a pandemia ter aberto espaço para que se fale mais e com mais naturalidade sobre o impacto do isolamento e do medo em nós — naquilo a que chamamos saúde mental —, continua a haver um terror ao precipício que cremos ser a loucura, do qual a experiência de ouvir vozes é indiscutível símbolo. 

Há um aparente consenso de que ouvir vozes que outras pessoas não ouvem é, necessariamente, um problema, sinónimo não só de loucura, mas também de violência, servindo esse suposto perigo como justificação para que se usem todos os meios para as suprimir e/ou afastar a pessoa da vida em sociedade. Contudo, como todas as outras experiências humanas, também esta existe num continuum. Quantas vezes já aconteceu ouvires-te ser chamada na rua, sem ninguém conhecido à vista? Quantas vezes já tiraste o telemóvel do bolso porque podias jurar que o tinhas sentido vibrar? E o que distingue estas alucinações da vida quotidiana das experiências que julgamos como sinais de problemas? O que distingue essas das vozes que guiaram Joana d’Arc em batalha, das vozes que ditaram a Schumann algumas das suas mais conhecidas composições ou da voz que Gandhi sempre acreditou vir de Deus? Apesar da tendência a olhar estas experiências com estranheza, a associá-las à loucura, à doença mental ou à violência, o facto é que elas são muito mais comuns e muitíssimo mais variadas do que imaginamos. 

Quando o psiquiatra holandês Marius Romme acedeu a apoiar Patsy Hage a encontrar outras pessoas, fora do hospital, que, como ela, ouviam vozes, foi surpreendido por dezenas de respostas de pessoas que, ouvindo vozes, nunca haviam tido contacto com serviços de saúde mental, tinham as suas próprias explicações para o fenómeno e este não lhes causava nenhum incómodo. Pelo contrário, consideravam-no algo positivo. Dos encontros e das conversas que se seguiram nasceu o Movimento Ouvir Vozes (MOV), um movimento social que reivindica espaço para estas experiências (ou as de ver, sentir ou crer coisas que outras pessoas não), facilitando espaços de encontro, promovendo investigação científica e redefinindo a forma como pensamos sobre elas.  

A abordagem convencional a estas experiências passa por negar a sua realidade e incentivar as pessoas a ignorá-las. Mas, sem outro apoio, esta abordagem pode aumentar a sensação de desespero e fragilidade, e é essa ausência de poder e controlo sobre a situação/experiência — e não o seu conteúdo — o que tende a distinguir quem precisa ou não de apoio profissional. O MOV, por outro lado, incentiva e apoia as pessoas a prestarem atenção às características das suas experiências e a explorarem as suas crenças pessoais, promovendo, assim, uma reconfiguração da relação com as vozes, visões e outras experiências. 

Ao facilitar espaços de encontro entre pessoas com experiências semelhantes, onde estas podem ser abordadas sem julgamento e onde cada pessoa tem direito às suas crenças, o MOV cria espaço para uma co-construção do conhecimento sobre as experiências, onde todas as vozes são bem-vindas, onde não há qualquer hierarquia entre elas e onde o conhecimento que vem da experiência é valorizado. De facto, todo o conhecimento sobre estratégias para lidar com as experiências que o MOV agora partilha veio de pessoas que lidam ou lidaram com elas em primeira mão. Os grupos de pares tornam-se, assim, um espaço de exploração e construção comum, de partilha de vivências, perspectivas e estratégias e, acima de tudo, um espaço de encontro onde, à semelhança do que acontece com outras vivências marginalizadas, as pessoas têm liberdade para, simplesmente, ser. Porque ainda que estas experiências não tenham necessariamente um impacto significativo na vida das pessoas, não poder falar sobre elas pode ter, porque nos isola. E, depois deste ano, creio que todas sabemos como é difícil sentirmo-nos isoladas. 

Ainda que partindo de um lugar de abertura e aceitação, importa referir o aumento da evidência de ligação destas experiências com a vivência de trauma (eg. luto, abuso, bullying). E se a pandemia nos ajudou a relembrar a ligação entre o sofrimento emocional e as experiências e contextos de vida, seria bom aproveitarmos para derrubar as fronteiras da nossa empatia que a limitam a formas normalizadas de expressão do sofrimento. Ainda que possivelmente perturbadoras, estas experiências são uma resposta adaptativa, criativa e útil a vivências adversas. Ao descartá-las como um irrelevante sintoma de doença, podemos estar não só a ignorar a mensagem subjacente e a condenar a pessoa à cronicidade, mas também a silenciar vivências traumáticas e desigualdades sociais. 

Que possamos criar em conjunto, com menos foco no que é normal e mais no que é humano. 

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