Para que serve a habitação pública?

A verdade é que a intervenção do Estado no “mercado da habitação” serve, entre outras coisas, para garantir a sua sustentabilidade e o seu equilíbrio.

“A habitação pública serve para os governos de esquerda comprarem votos.” Cheguei a ouvir opiniões como esta. Cheguei a ouvir muitas outras com um tom mais moderado, mas com um pendor semelhante. Tais afirmações não têm qualquer respaldo factual e revelam pouco mais que desconhecimento e preconceito. Alemanha, Bélgica, Irlanda e Reino Unido – onde a esquerda não tem conseguido “comprar” muitos votos - são alguns dos países da Europa em que a percentagem do parque habitacional público é estrondosamente superior à de Portugal.

É certo que o investimento nesta área gera um conflito ideológico incontornável. Quando temos organismos públicos a projetar, construir, reabilitar, oferecer ou arrendar casas, temos uma intervenção clara do Estado na economia. E esta intervenção acontece num dos seus sectores-chave: o imobiliário. A questão não é simples e expõe uma fricção entre preceitos fundamentais que estão na base de qualquer democracia ocidental: de um lado, a justiça social e a importância de garantir um tecto condigno a todas as pessoas; do outro, o liberalismo económico necessário para deixar o mercado funcionar, solto das amarras do Estado.

A verdade é que a intervenção do Estado no “mercado da habitação” serve, entre outras coisas, para garantir a sua sustentabilidade e o seu equilíbrio. Curiosamente, a declaração mais concisa a que assisti sobre esta matéria não partiu de um qualquer estadista progressista, mas de Dan Price, diretor de uma empresa multimilionária norte-americana de serviços financeiros.

Ele conta a seguinte história: os funcionários da sua empresa que recebiam um salário de 30000 dólares por ano não conseguiam sustentar uma casa nas imediações dos seus escritórios, na 22nd Avenue, em Seattle; como resposta a este problema, deliberou que se aumentasse o salário de todos os funcionários da empresa para um mínimo de 70000 dólares por ano, acreditando que estaria assim a resolver a questão; no entanto, o que sucedeu foi que o aumento exponencial do salário deste grupo significativo de pessoas conduziu a um aumento do preço da habitação naquela zona da cidade. Em suma, a sua solução criou outro problema. Dan remata concluindo que, apesar de ter tentado fazer a sua parte, este tipo de problemas sistémicos requer soluções sistémicas que os privados não conseguem providenciar.

Esta pequena história deve funcionar como lembrete para factos que não são novos, mas que tantas vezes são esquecidos em Portugal. Sem políticas públicas de habitação, o mercado imobiliário está condenado à especulação e ao colapso. E estas políticas não podem centrar-se apenas na regulamentação e na construção de habitação social; é absolutamente urgente a criação de soluções habitacionais para uma classe média cada vez mais sufocada pelo inflacionamento do preço das casas, que não vê os seus salários acompanharem esta tendência. Um conjunto de acontecimentos nos últimos anos tem vindo a promover o crescente agravamento deste problema no nosso país. Primeiro, a implosão financeira em consequência da crise do subprime em 2008.

Depois, um período de austeridade que em termos de políticas urbanas se refletiu num pacote de medidas com formulações neoliberais, onde se enquadram os Vistos Gold, os novos regimes de arrendamento urbano, a Lei do Alojamento Local ou o regime de isenções fiscais para fundos de investimento imobiliário. Tais medidas, às quais devemos boa parte da reabilitação das nossas cidades, facilitaram naturalmente a entrada dos núcleos urbanos portugueses nos mercados imobiliários internacionais, colocando-os à mercê de capitais globais cujas políticas de investimento e de arrendamento são incompatíveis com a realidade do português comum. Mais recentemente, a pandemia e os seus efeitos colaterais, onde se inclui o crescimento do desemprego, vem certamente contribuir para o alastramento deste problema, temporariamente adiado por paliativos como as moratórias e os layoffs.

É certo que a gravidade da situação foi já percecionada pelo poder político há vários anos que, desde a criação da Estratégia Nacional de Habitação em 2015, tem vindo a legislar sobre esta matéria. Mas para lá dos formalismos das leis e dos conselhos de ministros, o trabalho no terreno está por fazer. O Plano de Recuperação e Resiliência prevê um investimento sem paralelo na nossa história recente para reorientar a política de habitação em Portugal e não esquece a importância de responder à “desadequação entre os rendimentos das famílias de classe média e a oferta existente (…) que leva a que 26% das famílias que arrendam a sua habitação estejam em situação de sobrecarga”. O momento atual configura uma oportunidade ímpar para passar da teoria à prática e a premência para a implementação de soluções concretas está mais exposta que nunca. Será que vai ser desta?

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