A leitura e o digital: a realidade dura dos factos (1)

Desde o 1.º ciclo os adeptos do online dominam. Funcionários exemplares, esses são os mesmos que, com excepções, decerto, condenam os que, raros, ainda fazem das aulas o espaço onde a educação é a descoberta do imaginário, do rigor da expressão do pensamento.

Vão sendo cada vez mais as notícias – devidamente secundarizadas pelo aparelho publicitário e pela propaganda em curso – que dão conta das terríveis consequências que resultam do ensino online e da exposição das crianças e jovens à parafernália tecnológica (tablets, iPhones, televisão, redes sociais). Numa entrevista recente à BBC News, Michel Desmurget, director de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França, considera que estamos a formar uma geração de “cretinos digitais”, isto é, de crianças e jovens que, futuramente, terá vivido “o equivalente a 30 anos letivos em frente aos ecrãs, ou, se se preferir, 16 anos trabalhando em tempo integral!”. Isto equivale a “quase três horas por dia para crianças de dois anos, cerca de cinco horas para crianças de oito anos e mais de sete horas para adolescentes”. Antes de completarem 18 anos, diz o investigador, certas competências cognitivas estão irremediavelmente afectadas. Especialmente as competências sóciocognitivas, as que dizem respeito à produção discursiva, à linguagem, à capacidade de compreender o mundo e de, sobre o mundo, inferir ou estabelecer relações de associação, de dedução, de indução, de empatia.

Em rigor, é da apreensão da complexa realidade circundante que falamos, e devemos falar, quando se trata de olhar para o que se passa no ensino actual. Em causa está a construção de uma personalidade livre e responsável, consciente e autónoma, a qual, sem as competências sociolinguísticas e socioafectivas desenvolvidas, mais não é que um composto de forças primitivas pronto a explodir em face de qualquer adversidade (é ver as reacções de fúria, os estados de depressão ou de apatia de muitas crianças e adolescentes).

Aquilo que, para Vigotsky (1896-1934), em Pensamento e Linguagem (ed. Martins Fontes), é a ideia-chave, a saber, que o pensamento e a linguagem nascem ao mesmo tempo e estão interligados, não é mais que teoria, tal a rapidez com que, numa década, pouco mais, o homo sapiens se maquinizou. O que aconteceu foi uma espécie de estilhaçamento da linguagem – léxico empobrecido, sintaxe feita por lapsos e ausência de nexos lógicos –, reflexo de um pensamento fragmentado, como se as sinapses obedecessem a momentâneos minutos de sentido, logo seguidos de outros tantos minutos de alheamento. Ao homo sapiens, animal de linguagem e produtor de simbolização, sucede agora – na acertada expressão de Viriato Soromenho Marques (vide Jornal de Letras de 24 de Março-6 de Abril) – o homo amnesicus. É ainda o homem-massa de Ortega y Gasset que regressa – o homem que detesta a liberdade e aceitará ser escravo de quaisquer espécies de paternalismos. Esse homem, no fundo, foi sempre necessário à ideologia oca. É o feliz trabalhador acrítico, funcionário, que olha para quem questione a autoridade, ou para quem se atreva a sentir e a pensar diferente, ameaçando qualquer heterodoxia com a mesma intenção e vontade censórias de qualquer “ermo inquisidor severo”.

Pois bem, agora que regressámos às aulas presenciais, é imperioso dizer que, a reboque do digital, é no campo da educação que o tal homem-massa está cada vez mais presente. Factos, causas e consequências: nas escolas não há liberdade para ensinar a pensar, tantas são as imposições de departamentos disciplinares, tantas as directivas ministeriais, tanta a obsessão com as famigeradas metas curriculares – que são orientações gerais, não o objetivo final do ensino! A produção intelectual propriamente dita não existe: os professores universitários estão transformados em fazedores de papéis, já não de ensaios; impera o carreirismo mais nefando, contando para avaliação dos centros de investigação e dos investigadores não a qualidade dos papers, mas a quantidade. Só. Ressentem-se as aulas da ausência de um verdadeiro espírito investigativo, tal a malha tecnocrata que obriga a reuniões infindáveis sobre coisas acessórias. Não existe, na área das Humanidades, e noutras, mesmo as ditas ‘áreas científicas’, uma autêntica pedagogia da leitura, pois que se prefere o facilitismo da uniformização à construção de leitores competentes – leva tempo e dá trabalho.

No imediato não é lucrativo. A escrita é outro domínio que, com o digital, fica comprometido: falseiam-se resultados por muito que se fale de “estratégias” para que tal não aconteça. A consequência é óbvia: os próprios alunos vão preferindo o mero resultadismo à investigação propriamente dita: um 18 que atribui porque sim não causa problemas, um professor que atribua um 11, ou um 12, terá alunos a fazer abaixo-assinados por ser injusto. É uma geração digital, nascida para o saber à distância de um ‘clique’. É este o pão nosso de cada dia em todos os outros graus de ensino.

Desde o 1.º ciclo os adeptos do online dominam. Funcionários exemplares, esses são os mesmos que, com excepções, decerto, condenam os que, raros, ainda fazem das aulas o espaço onde a educação é a descoberta do imaginário, do rigor da expressão do pensamento. Os novos inquisidores trazem o tablet e usam as plataformas como arma de arremesso contra os que, fora de moda, levam livros, usam a linguagem sem o jargão tecnocrata: estes estão off, aqueles estão on; uns são seguidores de Bill Gates, outros são saudosistas de Miguel de Unamuno. Estes últimos, por muito que tenham lido e saibam seduzir os mais novos que, perplexos, acham “esquisitas” as aulas em que o património literário e cultural é o alfa e o ómega do trabalho didáctico-pedagógico, são espécie em vias de extinção e quanto mais rapidamente se extinguirem, melhor. Quem não admite que é assim é porque não vê ou não quer ver. Haverá excepções? Claro. Mas o padrão geral é este. Vence o homo amnesicus, nesta luta que, no horizonte, é ainda a luta pela liberdade do homem.

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