PRR: muros velhos não dão rosas

“Muros velhos não dão rosas”, escreveu a poetisa Florbela Espanca, e receitas obsoletas não modernizam, não promovem a resiliência nem contribuem para a indispensável transição climática.

Na semana que passou, o primeiro-ministro desdobrou-se em encontros destinados a divulgar a última versão do plano de recuperação e resiliência (PRR) nacional. Embora não exista ainda uma versão final do PRR publicamente disponível, e depois de ter admitido estar disposto a ver chumbado o documento a enviar a Bruxelas, o Governo recuou e cedeu, ou aparentou ceder, nalgumas críticas, basicamente as que apontam a sua insistência em promover soluções de “desenvolvimento” arcaicas e baseadas no betão.

No campo ambiental, as mexidas parecem sobretudo cosméticas. No respeitante aos transportes, o sector na origem de maiores emissões de gases com efeito de estufa (GEE), o Governo perdeu a dupla oportunidade de descarbonizar e de financiar no imediato os investimentos há décadas em atraso – Portugal tem hoje tanta extensão de rede de comboios como tinha há 128 anos, ao tempo da monarquia –, a começar por aqueles para os quais existem planos: a integração na rede transeuropeia, apostando na alta velocidade. Não esqueçamos que Lisboa é hoje uma capital sem ligação ferroviária a outras capitais da Europa. E a conexão Lisboa-Madrid, em três horas, não será assegurada se não ocorrer o necessário investimento na infraestrutura. Apesar do evidente entusiasmo do ministro Pedro Nuno Santos pela ferrovia, a verdade é que, no Ano Europeu do Transporte Ferroviário, Portugal anunciou esta semana que terá um Plano Ferroviário Nacional aprovado, na melhor das hipóteses, dentro de um ano. Até lá, envie o seu contributo.

Na chamada “economia azul”, registou-se um aumento de verbas, mas não é perceptível se a Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030 avançará com a mineração em mar profundo, antes mesmo de haver um conhecimento científico mínimo dos fundos marinhos, pese embora o ministro Ricardo Serrão Santos tenha defendido uma moratória entre 10 e 20 anos para a sua concretização. Nem tão pouco se compreende como se concilia esse objectivo com a mitigação das alterações climáticas ou com a meta de classificar como áreas marinhas protegidas 30% das nossas águas.

De resto, o executivo limita-se a retirar de um lado, para agradar a Bruxelas, colocando noutro. É o caso dos 25% de verbas para rodovias agora subtraídos do PRR, mas que serão financiados por fundos europeus. É o caso da barragem do Crato, que se manterá, apesar das objecções colocadas pela Comissão Europeia (CE), tendo sido retirada a parte precisamente relativa à transição climática, a opção fotovoltaica associada ao projecto, a construir financiada por um leilão solar.

O PRR que o Governo tem em mãos não escapa à opacidade. É verdade que de permeio permitiu a realização de duas consultas públicas, uma no Verão passado e outra na segunda quinzena de Fevereiro. Ambas com prazos curtos e quase arrancadas “a ferros”, nenhuma delas permitiu a divulgação pública dos contributos enviados (em número superior a três mil) nem aos cidadãos saber quais sobreviveram ao crivo apertado dos nossos governantes e decisores. Não existindo relatórios das consultas públicas, as mesmas parecem ter servido apenas o pretexto da falsa transparência.

É certo que o PRR canaliza e reforça investimentos para sectores tão relevantes como a saúde ou a educação. Contudo, além dos importantes pilares da resiliência económica/social e da inovação digital, no pilar que requer maior transversalidade e urgência, o da transição climática – não esquecer que, desde Julho de 2019, tanto a Assembleia da República como o Parlamento Europeu declararam que vivemos uma emergência climática e ambiental que coloca em causa a própria sobrevivência da humanidade e o secretário-geral das Nações Unidas exortou todos os Estados a reconhecerem essa mesma situação de emergência –, o plano parece um “patchwork” de projectos bolorentos unidos por frágeis fios de promessas vãs, vagas e mal quantificadas.

Isto é particularmente verdade no que respeita em especial a um novo e decisivo instrumento de gestão, praticamente omisso no documento: o orçamento carbónico e os custos, em emissões de gases carbónicos e não-carbónicos, associados a cada iniciativa. Com a agravante de que a quantificação deveria abranger as emissões estruturais, isto é, ao longo de todo o ciclo de vida desses GEE.    

Também se afigura certo que o plano consubstancia a negação dos documentos estruturantes da União Europeia que deveria espelhar, designadamente o Pacto Ecológico Europeu e a Estratégia Europeia para a Biodiversidade, já para não referir a muito aguardada Lei Europeia do Clima que o executivo, que assegura neste semestre a presidência do Conselho da UE, prometeu ter pronta até 22 de Abril.

Por outro lado, o PRR padece de uma excessiva centralização às mãos do ministro do Planeamento, fazendo prever o agravamento das desigualdades territoriais e a hiperconcentração do financiamento no litoral, em particular nas áreas metropolitanas.

Para se afirmar como uma “lufada de ar fresco” rumo a uma verdadeira transição, deixamos aqui alguns exemplos de medidas que este PRR poderia integrar: dar prioridade a políticas de conservação, de restauro ecológico e florestal com base na floresta autóctone; regenerar solos e inverter a marcha impiedosa da desertificação que afecta já mais de um terço do território, colocando em causa a segurança alimentar nacional; implementar de forma acelerada a estratégia nacional para a agricultura biológica, verdadeira aposta para dinamizar o mundo rural esquecido, incluindo a promoção da silvo-pastorícia, a formação alargada de agricultores e o revitalizar das culturas de sequeiro, sobretudo a sul do Tejo, em detrimento das práticas intensivas de regadio que se pretende incentivar, designadamente no Alto Alentejo, mal grado o desastre ambiental trazido pelo Alqueva; criar um serviço nacional para a nutrição e alimentação saudável; investir massivamente na ferrovia, nomeadamente na ligação rápida internacional entre Lisboa e Madrid, como de forma reiterada consta das recomendações do Semestre Europeu; criar centros locais de co-working nos bairros, para promover comunidade, prevenir o isolamento social a que conduz o teletrabalho e mitigar a poluição atmosférica.

“Muros velhos não dão rosas”, escreveu a poetisa Florbela Espanca, e receitas obsoletas não modernizam, não promovem a resiliência nem contribuem para a indispensável transição climática. Não é com mais barragens, pontes rodoviárias internacionais sobre áreas protegidas, novas rodovias a destruir Rede Natura, transvases entre bacias hidrográficas ou falta de visão estratégica que vamos lá. Ainda mais quando tudo indica que, uma vez mais, a obrigatória Avaliação Ambiental Estratégica do PRR ficará pelo caminho. Este Governo pode ter-se auto-intitulado da “Acção”, mas ainda parece longe de poder designar-se da Urgência Climática!

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