Lembras-te? Uma pergunta que é um laço

Tudo muda com o “lembras-te?” O olhar fica “ternurento”, baixamos a guarda, voamos para esse mundo etéreo que é o passado. Por algum motivo enternecemo-nos muito mais com quem fomos.

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"O “lembras-te” é um lugar seguro" Anthony Delanoix/Unsplash

Lembras-te? Uma pergunta que é um laço. Uma pergunta que acciona vivências muito mais fortes do que o que possa estar a acontecer no momento. O que acontece agora aborrece, indigna, magoa. O que acontecerá amanhã entusiasma, excita, amedronta. E o que aconteceu, excepto para aqueles que se agarram ao rancor, ou mesmo para esses, é um carimbo, tem a tecedura da memória, a magia de acrescentar um ponto. Encontrar um amigo e reviver pode ser melhor do que encontrar um amigo e viver.

Tudo muda com o “lembras-te?” O olhar fica “ternurento”, baixamos a guarda, voamos para esse mundo etéreo que é o passado. Por algum motivo enternecemo-nos muito mais com quem fomos.

Com os meus primos, convocamos a toda a hora a nossa avó. O meu primo imita a sua exclamação, uma exclamação que só a minha avó fazia quando, por exemplo, o canal mudava sem querer a meio da novela, quando o televisor se estragava ou quando algum imprevisto se impunha. “Ooh!” Era um só murmúrio onomatopaico. Mas era o seu “Ooh”, dito no seu tom de voz baixo e fino. Isto não tem qualquer tipo de interesse para ninguém. Se estamos com mais pessoas, a nuance no tom do “Ooh” que o meu primo faz a imitar a minha avó passa despercebida aos demais. Mas nós cruzamos o olhar: “Lembras-te?” e está atado o laço. Abre-se um vórtex na dimensão espaço-tempo e é como se estivéssemos outra vez com a avó a ver televisão.

Os meus pais separaram-se e, ao longo dos anos subsequentes, foram-se encontrando ocasionalmente para fazer as minhas transições em umbrais de portas, carros, portões, ou em aniversários e eventos comuns. Nas conversas de circunstância, às vezes, um deles consegue inserir um elemento do passado, um amigo antigo, uma viagem. E a conversa de circunstância, que até duas pessoas que já foram casadas transforma em desconhecidos, cai por terra com o primeiro que tem a coragem de evocar a memória: “Lembras-te?” É um “lembras-te” tímido, com o desassombro de quem cede num jogo em que nos ensinaram que esquecer é seguir em frente. Um “lembras-te” que teme o não, mas que sente o sim. Um código para poderem passar a agir como pessoas que partilharam outrora uma vida. Uma imposição de ternura em forma de lembrança.

O “lembras-te” é um lugar seguro. Há pessoas com opiniões tão diferentes das nossas, pessoas com quem discutimos, com quem não partilhamos a mesma visão do mundo, com quem nos embrenhamos em debates políticos acesos, mas que marcaram o nosso mundo. Penso num tio com quem discuto política no Facebook, mas, quando o encontro, fala-me dos tempos em que íamos às lavagens de carro automáticas, de como eu adorava ver as escovas a envolverem os vidros e a enchê-los de espuma, de como ele era o único adulto que me levava ao McDonald’s, de como me ensinou a andar de bicicleta. “Lembras-te?” Às vezes, a memória salva o presente.

Todas as famílias têm as suas histórias preferidas, aquelas que difundem em jantares e convívios, as que repetem até à exaustão e que são sucesso garantido. A minha mãe conta sempre a história de quando eu era pequenina e lhe pedi para fechar as janelas à noite porque tinha medo de ser mordida pelas melgas; ao que ela respondeu que não era preciso, porque tinha uma pomada muito boa que faria com que as melgas não me picassem. Eu, desconfiada, perguntei: “Como é que a mãe consegue?” Recordo-me de ver o seu espanto perante a minha genuína suspeita: “Como é que eu consigo o quê?...”; “Pôr a pomada nas melgas...” Por mais vezes que repita esta história à volta de mesas cheias, a minha mãe encontra sempre o meu olhar no fim do relato e pergunta: “Lembras-te?” A pergunta activa esse vínculo e, sob o esfumar dos risos da plateia, voltamos àquela noite, em que eu era uma menina de cinco anos assustada, mas que não precisava de ter medo porque comigo estava a minha mãe e uma mãe tem sempre uma pomada para qualquer mal do mundo.

Às vezes, o “lembras-te?” está implícito num reviver de uma memória que está tão vívida que dispensa a pergunta. Todos se lembram, todos se riem. Outras vezes, especialmente se envolver um grupo de amigos, o enredo vai-se montando: há um que não se lembra de nada, outro que não se lembra de pormenores e, revivendo a história em modo de tapeçaria, um acrescenta aqui, o outro acolá, o novelo desenvencilha-se, num compêndio perfeito de riso e nostalgia. Uns vão contradizendo outros: “Não, isso foi noutra noite, nessa noite o segurança da discoteca ficou nosso amigo e foi tomar o pequeno-almoço connosco! Lembras-te?”

Eu adoro estar com amigos que se lembram das nossas histórias. Sacrificamos com gosto o presente por aquele passado em que éramos mais alguma coisa. Mais inconsequentes, mais aventureiros, mais divertidos.

Mas também há as histórias das quais não nos lembramos. E quem as conta é acometido pela urgência de que nos lembremos, acrescentando mais e mais elementos até que se faça alguma luz. Como se só a nossa lembrança conferisse validação ao que aconteceu. Como se aquela memória tivesse de ser resgatada por todos os intervenientes, para que tenha efectivamente existido e possa perdurar no tempo. Se estou com dificuldade em recordar um episódio que me está a ser contado e no qual participei, tão bem contado, tão credível, tão verosímil e, mesmo assim, não me consigo lembrar, vem a outra pergunta, a que não esconde a desilusão: “Não te lembras?”

O “não te lembras?” também tem muito uso naqueles encontros com amigos dos pais que nos viram pela última vez quando éramos “assim” (frase acompanhada pelo gesto que assinala a nossa altura na ocasião).

Lembrar fortalece as relações humanas, é como se a nossa memória fosse um baú onde só quem tem importância entra. A capacidade de vingarmos na memória dos outros é um lenitivo para as nossas inseguranças. Se vamos reencontrar alguém que não vemos há muito tempo e que temos em grande conta, alguém que achamos que dificilmente nos guardaria na lembrança, antecipamo-nos: “Não te lembras de mim, pois não?”, como que para aliviar esse possível desapontamento.

Lembrar tem a distância de segurança, o acalorar dos afectos, o amortecer das dores, a filtragem do dispensável, o aprimorar das frases, o intensificar do sentir, o arredondar das histórias, a convocação dos ausentes, a atenuação dos erros, a ampliação dos gestos.

E, se não tivermos por perto alguém com quem trocar a cumplicidade da memória delicada, pode ser um objecto, um som ou um cheiro a cumprir esse papel. Se começa a tocar a música que eu dançava com amigas, se sinto o cheiro do perfume de quem já partiu, se encontro a Polaroid esquecida na gaveta. Se vou ao armário e está lá o chapéu que eu não largava naquele Verão há tantos anos, o postal que me enviaram de longe, o estojo preferido da escola.

Há memórias “enrustidas” no isqueiro que encontramos, lembranças encravadas num vestido e felicidade sublimada num bilhete de avião antigo. Há objectos que nos apanham de surpresa, nos despontam o riso ou a lágrima e nos agitam o espírito, como se sussurrassem: Lembras-te?

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