Tempo de reinício: falando de saúde mental e psicológica

Este tempo desladrilhou o chão dos nossos vínculos, afastando-nos das relações próximas e íntimas.

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Canmandawe/Unsplash

Abril de 2021.

Um ano de travessia da epidemia covid, é tempo de falar de nós, os seres humanos. A essência esquecida; o escandaloso rasgão interior que sinaliza o trauma; a dor sem nome nem forma nem história; a angústia de sentir que vida e morte, de repente, se tornam quase-sinónimos na significação interna (subjectiva, obrigatoriamente) — anuncia o enorme sentimento de estranheza que, perante um novo, demasiado novo e adverso, nos facilita o adoecer psíquico por nos desapossar de nós e de quem somos. Sentimos que somos estranhos dentro de nós mesmos. Este tempo desladrilhou o chão dos nossos vínculos, afastando-nos das relações próximas e íntimas. As nossas relações de bem, belo e verdadeiro. Este tempo colocou-nos do lado de fora de nós, do lado de fora de tudo o que, para nós, é apenas e só essencial.

Num ano apenas, aumentaram consideravelmente os níveis de inquietação interior dos portugueses. Ansiedade, tristeza e angústia cresceram exponencialmente no espaço do dentro, revelando agora o que antes prevíamos como algo preocupante. Está a acontecer — somos chegados ao primeiro nível de manifestação objectiva do quanto esta epidemia “estraga” a nossa psicologia. Estamos, pois, em condições de voltar ao início, ou seja, ao tempo de reiniciar a forma de pensar sobre saúde mental e psicológica.

Poderia, na verdade, ser algo muito simples se, como nos disse Saint-Exupéry no famoso livro O Principezinho, não nos esquecêssemos com tanta frequência de que o essencial é invisível aos olhos. Se mantivéssemos presente na nossa consciência e na forma de estar e de ser diária a matéria principal de que somos feitos. De amor, tão-somente. Afinal, somos seres do sentir, dotados de capacidades ímpares que nos permitem pensar a experiência da vida em todas as suas variantes e possibilidades, de forma extraordinária. A possibilidade de sermos criativos, porque subjectivos, faz de cada um de nós seres construtores constantes de nós mesmos, dos outros e do mundo no qual nos inscrevemos (ao qual pertencemos), com o qual interagimos e no qual intervimos. Somos seres psicológicos, nascentes das e nas relações humanas de amor e, porque nelas nos construímos e transformamos do nascimento até à morte, somos também, por isso, capazes de transformação exponencial. É em amor, e só em amor, que aprendemos a superar obstáculos, resolver problemas, atravessar crises e a repensar para voltar a agir. É, também, uns com os outros, e apenas assim, que podemos prosseguir, para refazer, continuar e progredir.

Um ano de travessia covid-19 coloca-nos a todos em condições de iniciar a elaboração de um plano de pensamento sobre saúde mental e psicológica, assente nos essenciais esquecidos (individuais e universais). Precisamos de mudar de paradigma no que respeita ao nosso propósito de vida — que, forçosamente, terá de voltar a ser colectiva. O individualismo morre aqui. As distracções com as coisas mundanas, supérfluas, desnecessárias, desequilibradas e desequilibrantes, superficializadas e robotizantes mostram-se caducas e perversas quanto à sua eficiência na resolução de problemas maiores como o que atravessamos. Mais: revelam-se agora como apostas falsas, perdedoras, deixando-nos a todos com as entranhas de fora, aflitos, à beira de um abismo futuro sem capacidade para saltarmos num acto de fé pleno. Mas precisamos de saltar, uma vez que atrás de nós já cheira a cinzas.

Só se vê bem com o coração: bondade, generosidade, respeito pelo outro, solidariedade, empatia, companhia, compreensão, lealdade, partilha, criatividade, inovação, simplicidade, compaixão, amizade, fraternidade, igualdade.

Voltemos ao essencial. Recapturemos a nossa saúde mental e psicológica. Reergamo-nos com a coragem de sermos simplesmente quem sempre fomos, sem esquecimentos nem robotizações. Vamos?

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