O Estado Islâmico está presente em Moçambique?

Em não raros casos, o jihadismo é mais fruto da conveniência do que propriamente de sentimento de pertença à causa. E é esta dicotomia que importa perceber no caso moçambicano, porque será através da resposta obtida que se torna possível definir a estratégia a usar em Moçambique.

O aumento da tensão no norte de Moçambique atrai cada vez mais a atenção de uma comunidade internacional que olha para um problema que pode crescer de tal forma ao ponto de poder tornar-se demasiado complexo para se solucionar no curto prazo e criar uma ameaça à paz e à segurança na África austral. Cientes desta realidade, os EUA não hesitaram em introduzir, no início de Março, o grupo armado activo em solo moçambicano na lista de organizações terroristas, denominando-o ISIS-Mozambique.

Este grupo é conhecido por duas designações: Ahlu Sunna Wal'Jamma (“seguidores da Suna” ou ASWJ) e Al-Shabaab (“a juventude”). Começou a merecer uma monitorização mais vigorosa dos serviços de segurança após o Estado Islâmico ter confirmado, em Junho de 2019, a adesão da organização moçambicana à sua rede jihadista internacional.

O ASWJ moçambicano é um movimento autónomo e distinto do grupo Forças Democráticas Aliadas (FDA), activas particularmente no leste da República Democrática do Congo (RDC). Contudo, não é por acaso que os EUA também introduziram o FDA na lista de organizações terroristas ao mesmo tempo que a ASWJ e passaram a denominar a primeira de ISIS-DRC: em termos geoestratégicos, Moçambique e a RDC integram o denominado Estado Islâmico na Província da África Central (Wilayat Wasat Ifriqya).

Tanto o ASWJ como o FDA têm projecções e capacidades diferentes, mas o Estado Islâmico olha para as duas como elementos nucleares de uma estratégia que ambiciona no futuro unir as áreas de influência onde as duas operam através da conquista territorial na Tanzânia e, eventualmente, noutros Estados dos Grandes Lagos. Utópico? Nigéria, Níger, Chade, Burquina Faso e Mali também acreditavam que sim e actualmente não encontram solução para derrotar várias expressões de jihadismo (incluindo do Estado Islâmico) nos respectivos territórios.

Olhando para o caso do ASWJ, é interessante constatar que o Estado Islâmico voltou a reivindicar actividade jihadista em Moçambique. Ao longo de vários meses, o boletim informativo semanal que o Estado Islâmico distribui aos seus simpatizantes referia sucessivamente as incidências em solo moçambicano, incluindo com infografia especializada e imagens exclusivas das conquistas feitas. Contudo, já há várias semanas que não constava qualquer informação sobre Moçambique.

Agora, fê-lo indicando ter conquistado a vila de Palma e ter infligido 55 mortes ao exército moçambicano, ao mesmo tempo que acompanhou a comunicação com uma fotografia de jihadistas em Mocímboa da Praia, portanto, a mais de 80 km da localidade que alegou ter conquistado. Podemos, por isso, questionar se Palma foi totalmente conquistada pelo ASWJ e, simultaneamente, colocar em causa a profundidade das relações entre esta organização e o Estado Islâmico.

Neste sentido, os boletins oficiais podem ajudar-nos a perceber a realidade no terreno: o período de tempo em que o Estado Islâmico permaneceu em silêncio sobre Moçambique contrasta com a coluna semanalmente dada à actividade na RDC e mais ainda com a página inteira dedicada às actividades na Nigéria e no Chade. Se assumirmos ainda que quando o ASWJ conquistou o porto de Mocímboa da Praia o Estado Islâmico demorou duas semanas a assumi-lo oficialmente e que algumas acções do ASWJ não foram reivindicadas como suas, é possível admitir algum distanciamento e falta de acordo relativamente ao modo de integração da organização activa em Moçambique na rede do Estado Islâmico.

Regra geral, as relações entre grupos armados locais e o Estado Islâmico tendem a seguir um modelo semelhante ao do contrato de franquia habitualmente usado por multinacionais da restauração: quanto mais os grupos armados aceitarem a subordinação à hierarquia e à direcção do Estado Islâmico, mais esta organização as apoia financeira, táctica e militarmente. Em casos de integração plena na rede do Estado Islâmico, os grupos armados locais adoptam oficialmente os símbolos e a designação “Estado Islâmico” seguida do local onde operam. A “casa mãe”, por assim dizer, ganha prestígio internacional e uma projecção capaz de atrair outros movimentos semelhantes para a causa jihadista.

Podemos assim concluir que, em não raros casos, o jihadismo é mais fruto da conveniência do que propriamente de sentimento de pertença à causa. E é esta dicotomia que importa perceber no caso moçambicano, porque será através da resposta obtida que se torna possível definir a estratégia a usar em Moçambique. Aqui, a reivindicação da conquista de Palma, cinco dias após o ocorrido, atesta fragilidades na comunicação entre o ASWJ e o Estado Islâmico. Mas a comunicação pode reflectir que as duas entidades acordaram uma estratégia comum e apostada no estreitamento das relações.

Num quadro destes, o sentimento de pertença do ASWJ à causa jihadista pode tornar a resolução do problema mais complexa, sobretudo porque poderá exigir uma resposta mais musculada num teatro de operações indesejado por militares estranhos ao contexto. O facto de o ASWJ ter rompido no passado com as instituições seculares e abraçar uma interpretação radical do Islão causa algum receio quanto à verificação de tal hipótese. Porém, o adiamento do aprofundamento da ligação ao Estado Islâmico pode significar que se está em presença de uma situação de conveniência em que o ASWJ gere com relativo pragmatismo a ambição de conquistar o poder e a influência política e social a todo o custo. A ser assim, teoricamente, é possível admitir que o grupo armado moçambicano abra lugar à resolução da situação de segurança através de algum tipo de negociações com o poder central.

Independentemente da evolução dos acontecimentos no futuro mais próximo, será fundamental seguir as próximas publicações do Estado Islâmico e perceber ainda se a capacidade operacional do ASWJ é reforçada, incluindo ao nível do manuseamento de explosivos, potencialidade em que o Estado Islâmico é exímio e que o grupo armado activo em Moçambique ainda não demonstrou possuir. Neste quadro, importa perceber que quanto mais confiante o ASWJ for e quanto maior capacidade obtiver, mais difícil será a pacificação de Moçambique e da região passível de ser alvejada por esta organização como um todo.

Alexandre Guerreiro, 39 anos, Lisboa, Doutorado em Direito Internacional Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, analista de Justiça e Segurança, autor do livro Islão, o Estado Islâmico e os Refugiados: Quebrar Mitos e Desvendar Mistérios 

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