A covid-19 veio dos morcegos, diz a OMS, mas houve um intermediário para chegar até nós

Relatório final da missão científica da Organização Mundial da Saúde que foi a Wuhan afasta mesmo hipótese de que o coronavírus possa ter resultado de uma fuga de laboratório, mas deixa muitas questões por responder.

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Um mural em Wuhah, que exalta a luta contra a pandemia Reuters/ALY SONG

O novo coronavírus foi transmitido por morcegos-de-ferradura aos seres humanos através de um outro animal, que serviu de intermediário – esta é a conclusão que os cientistas da missão da Organização Mundial da Saúde (OMS) que foram a Wuhan consideram mais provável, dizem no relatório final da missão, finalmente tornado público nesta terça-feira.

A hipótese de o SARS-CoV-2 se ter espalhado pelo mundo em resultado da fuga acidental do vírus de um laboratório, defendida pela Administração de Donald Trump – o ex-director dos Centros de Controlo e Prevenção das Doenças dos EUA, Robert Redfield, disse na semana passada ao jornal USA Today que estava convencido disto –, foi considerada “extremamente improvável” e por isso não foi explorada de forma tão aprofundada, disse Peter Ben Embarek, o cientista que liderou a missão da OMS, na conferência de imprensa desta terça-feira de apresentação do relatório.

Em causa está sobretudo o Instituto de Virologia de Wuhan, embora existam outros laboratórios na zona. Este instituto foi criado depois de ter surgido o vírus da SARS, em 2002-2004, precisamente para fazer vigilância de novos coronavírus, o que deu azo a todo o tipo de teorias da conspiração sobre a origem do SARS-CoV-2, que foram suportadas pela Administração Trump.

Mas os cientistas já tinham dito na conferência de imprensa na China, no fim da sua viagem a Wuhan, no início de Fevereiro, juntamente com cientistas chineses, que esta era a possibilidade menos credível. Agora, ao apresentarem o relatório em que apontam as próximas pistas que deve seguir a investigação sobre a origem do SARS-CoV-2, os cientistas explicam que uma vez que não existia uma suspeita fundamentada sobre o laboratório, este não foi alvo de uma investigação aprofundada.

"Especulações"

“Só vimos especulações em torno do facto de existir um laboratório nas imediações de Wuhan que trabalha com coronavírus, e logo deveria haver uma relação. Mas nunca se encontrou nenhuma prova de fuga do vírus do laboratório”, justificou Peter Ben Embarek na conferência de imprensa sobre a divulgação do relatório, face a uma avalanche de perguntas sobre o tema.

Ainda assim, os cientistas da missão da OMS visitaram a instituição, entraram nos laboratórios, conheceram os protocolos de segurança e o tipo de trabalho que lá se faz. “Mas não se fez uma examinação forense do laboratório, isso é algo mais complexo e não estávamos ali para fazer isso”, declarou Dominic Dwyer, médico do Hospital Westmead (Austrália), outro membro da equipa.

Esta abordagem foi criticada por outros cientistas e intelectuais, entre os quais Jamie Metzl, especialista em geopolítica, futurólogo, escritor, membro do think tank Atlantic Council que trabalhou para a Administração Clinton. Consideraram que a OMS não foi suficientemente diligente na sua investigação e acham que não foi dada atenção devida ao Instituto de Virologia de Wuhan. Questionam ainda o facto de esta ser uma “investigação conjunta” com cientistas chinesas, considerando que isto influencia as conclusões.

A investigação da origem do novo coronavírus é um tema extremamente sensível em termos geopolíticos, apesar de ter mudado o poder em Washington. Os Estados Unidos têm-se mantido bastante críticos sobre o trabalho dos cientistas da OMS. “Temos preocupações sérias sobre a metodologia e o processo que levou à elaboração deste relatório, incluindo o facto de que aparentemente Pequim ajudou a escrevê-lo”, disse o secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, numa recente entrevista à CNN.

A OMS aproveita este reforço para fazer alguma pressão sobre a China: o director-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse aos Estados-membros desta agência das Nações Unidas, ao apresentar o relatório da missão, que Pequim negou alguma informação, relata a agência Reuters. Peter Ben Embarek relativizou isto: “Temos uma quantidade de informação incrível, dados de mais de 76 mil casos de covid-19. Mas há sempre algumas áreas em que há dificuldades, questões de privacidade dos dados, agravadas pelo facto de serem fornecidos a estrangeiros”, disse o cientista da OMS, que se mostrou convicto de que há-de continuar a chegar muita informação da China, recolhida e tratada pelos seus colegas chineses.

"Temos de escavar mais"

No relatório, os cientistas sublinham que uma epidemia nem sempre surge no local onde começou, e esse parece ser o caso da covid-19. O mercado de Huanan, onde surgiram os primeiros casos, não terá sido mais do que um “evento de ampliação” da epidemia, disse Marion Koopmans, directora do Departamento de Virologia do Centro Médico Erasmus (Países Baixos). “A análise do genoma de amostras virais de alguns dos primeiros casos em Wuhan mostra já alguma diversidade, o que nos diz que temos de escavar mais para chegar até à origem do vírus”, explicou.

Embora não tenham conseguido determinar com precisão a origem do novo coronavírus, produziram quatro hipóteses, atribuindo-lhes um grau de probabilidade.

Uma das hipóteses colocadas pelos cientistas foi a da transmissão directa do novo coronavírus pelos morcegos aos seres humanos. Foi considerada provável, embora não muito. Os vírus geneticamente mais próximos do SARS-CoV-2 já detectados foram descobertos em morcegos na província de Yunan, em 2013, mas são antepassados distantes, dizem no relatório da OMS. Outros vírus com alguma proximidade genética foram encontrados em morcegos em vários locais na Ásia.

O que isto mostra é que o SARS-CoV-2 não apareceu do nada, de repente – os seus antepassados, e versões mais ou menos próximas, já andavam em circulação na Ásia há alguns anos, e não só na China. É possível conceber que estes vírus tenham circulado entre populações asiáticas de morcegos e ocasionalmente, infectando outros animais, à medida que a desflorestação avança e os homens entram cada vez mais em contacto com animais selvagens. Algum animal doméstico, ou um animal selvagem que se aproxima mais dos seres humanos – talvez que seja caçado – poderá ter sido o hospedeiro intermédio que o passou aos seres humanos.

Um destes vírus distantes pode ter-se adaptado melhor ao ser humano num destes animais intermédios – por isso, os cientistas chineses analisaram espécies animais que têm nas suas células os receptores ACE2, a porta de entrada do vírus SARS-CoV-2 no organismo. Foram identificadas cerca de 500 espécies para fazer essa investigação, que está a decorrer, diz o relatório.

Os cientistas sublinham que vírus semelhantes foram encontrados em pangolins (entretanto ilibado como a espécie intermédia), e que visons, gatos, hamsters e furões são especialmente susceptíveis à covid-19, e transmitem o coronavírus a outros indivíduos da mesma espécie. Um estudo pelo menos mostra que os gatos transmitem a doença, mesmo não tendo sintomas, como acontece com os seres humanos.

Mas as aves e os porcos, fundamentais para fazer a mistura de vírus da gripe que podem vir a infectar-nos, não se mostraram susceptíveis ao novo coronavírus – o que merece mais estudos, dizem os cientistas.

Aqui passamos à quarta hipótese: a ideia de que o novo coronavírus se tenha transmitido ao homem através de carne congelada, que pode ser de animais selvagens criados em quintas na China rural para ser vendida como se se tratasse de caça. Mas a equipa diz “não haver provas de que a comida congelada seja uma fonte ou via provável de transmissão do vírus”.

Mas os cientistas cartografaram as bancas do mercado de Huanan, onde foram detectados os primeiros casos de covid-19 em Dezembro de 2019, que levaram a um isolamento da cidade por 76 dias, conseguiram ver se era vendida carne ao lado de marisco, por exemplo, e identificaram os fornecedores do mercado – que vêm de 58 países e nove províncias diferentes na China, algumas das quais conhecidas como pontos quentes de diversidade dos morcegos que podem ser os hospedeiros naturais de um coronavírus que tenha evoluído até se transformar em algo capaz de causar uma pandemia entre os seres humanos.

Por isso, Fabian Leendertz, veterinário do Instituto Robert Koch, na Alemanha, outro elemento da equipa, aconselhou paciência. “Muitas vezes, a descoberta da origem de uma doença leva muitos anos, vejam a literatura [científica]. Neste momento, cientistas em todo o mundo estão a trabalhar para tentar descobrir a origem do SARS-CoV-2.”

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