Sobre o trabalho escravo e outros comunismos

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Na sociedade neoliberal do rendimento ocorre uma exploração sem autoridade. O sujeito forçado a render, a explorar-se a si mesmo, é ao mesmo tempo senhor e escravo. Por assim dizer, cada um carrega consigo seu próprio campo de trabalhos forçados.” Byung-Chul Han, filósofo coreano

Auto-exploração cansa

A transformação das condições laborais devido à pandemia, acelerou um fenómeno que muitas empresas já andavam a tactear, mas ainda não se tinha generalizado, o do trabalho à distância, com o espaço colectivo a existir apenas virtualmente. E o que se podia pensar como sendo uma libertação do trabalhador das amarras do quotidiano, das deslocações para o emprego às refeições fora, acaba por se transformar em sujeição ainda maior do indivíduo às regras da empresa que passa a entrar também na sua esfera privada. Como escreve o filósofo alemão de origem sul-coreana Byung-Chul Han, num ensaio publicado no El País, o empregado passa a “explorar-se a si mesmo” em nome do empregador, o que torna a sua sujeição ainda “mais eficaz” porque traz com ela “a sensação de liberdade”. E essa nossa auto-exploração em nome de um bem maior está a tornar-nos ainda mais cansados do que já estávamos, até porque, com a pandemia, desapareceram as válvulas de escape da pressão quotidiana, o divertimento nocturno, a ida a um concerto, as viagens exóticas ou menos exóticas. Ou um beijo, um abraço ou o sexo sem compromisso. E como a nossa casa também se tornou um prolongamento virtual da empresa, desaparece a redoma protegida onde nos abrigávamos dos problemas do emprego e com ela o espaço para os nossos pulmões respirarem outro ar. Se a nossa casa é também o local de trabalho, nada impede que todos os momentos em casa sejam de trabalho – podemos responder àquele email atrasado, cumprir aquele prazo insanamente apertado. E sem pagamento de horas extraordinárias. Neste eterno mundo de exploradores e explorados, até o vírus parece reconhecer quem manda.

Salto à vara

Emily Kenway não acredita muito na luta contra a escravatura moderna. O que é estranho tendo sido ela conselheira do primeiro comissário para a luta contra a escravatura do Reino Unido, um cargo criado pela então primeira-ministra Theresa May, que muito se empenhou em combater o fenómeno. Kenway, que publicou agora um livro chamado The Truth About Modern Slavery, diz que “a história da escravidão moderna é prática para providenciar legitimidade moral às próprias políticas que permitem a exploração grave à partida”. Os governos definem contornos para aquilo que é difícil de definir e estabelecem políticas para combater aquilo que eles próprios definiram. Como a criação de novas leis mais duras contra a imigração porque assim se combatem os criminosos que fazem tráfico humano e que se aproveitam da miséria alheia para enriquecer. Quem pode opor-se a legislação que visa lutar contra esses criminosos? E, no entanto, se olharmos mais de perto, percebemos que não são os Lambaça desta história os vilões a quem devemos estar atentos, porque quem fornece o barco para uma travessia arriscada do Mediterrâneo não criou a miséria desesperante que leva alguém a preferir morrer do intento no mar do que a deixar-se definhar sozinho no seu canto. A luta contra a escravatura moderna é um eufemismo civilizado para que o aumento da voltagem na cerca eléctrica do condomínio fechado seja tema aprovado para chá das cinco. Mas se o desespero é uma vara, alguém há-de aprender a usá-la mais alta para saltar por cima.

Tomem lá um sábado

Os trabalhadores do comércio e indústria conquistaram as jornadas diárias de oito horas de trabalho em 1919. Mais de 100 anos passaram e, mesmo que Espanha esteja a testar a possibilidade da semana das 32 horas e em França, apesar das grandes contestações à reforma do Governo de Lionel Jospin, as 35 horas de trabalho estejam em vigor há duas décadas, as oito horas diárias (hoje 40 horas semanais) continuam a ser uma referência laboral. Isso em países onde as relações laborais estão mais rigidamente regulamentadas. Não é assim nos Estados Unidos, onde apesar da força de alguns sindicatos, as condições laborais impostas por muitas empresas acabam muitas vezes a reduzir o trabalhador a um ser unidimensional que vive no espaço laboral. O relatório sobre a condição de trabalho dos funcionários do Goldman Sachs,  que exigem menos horas de trabalho que as 95 que muitas vezes os obrigam, é um sinal, esse sim, da escravatura moderna. Que as pessoas se vejam obrigadas a pedir que as deixem fazer semanas de 80 horas a bem da sua condição física e mental é sinal de barbárie. Perante o relatório que denuncia as condições laborais atrozes, onde 100% dos inquiridos diz que o trabalho prejudicou as suas relações familiares e de amizade, David Solomon, o director executivo acenou com o “reforçar da regra dos sábados livres” como um beneplácito maior. O que irá fazer agora o jovem bancário do Goldman Sachs para ocupar o seu tempo das 21h de sexta-feira às 9h de domingo, sem amigos e longe da família, deverão estar a perguntar-se alguns membros do conselho de administração enquanto bebericam o seu Macallan Double Cask de 18 anos.

Comunismos

Ao fim de quase meio século, um sindicalista vai chefiar a secretaria de Trabalho nos Estados Unidos. Marty Walsh viu a sua nomeação aprovada na segunda-feira pelo Senado e demitiu-se da presidência da Câmara de Boston para assumir o cargo. Que um sindicalista chegue ao mais alto cargo político laboral sem levantar ondas, num país onde qualquer cedência política federal em prol do trabalhador é facilmente classificada como comunismo (e poucas palavras têm conotação tão negativa nos EUA), pode deixar-nos a pensar duas coisas: ou de que algo está a mudar ou que Walsh é mais um sindicalista alinhado com o poder político. No entanto, Walsh, que agrada a republicanos pela colaboração com as empresas em Boston, recebe o presente envenenado de assumir a pasta numa altura em que 18 milhões de pessoas perderam o emprego por causa da pandemia no último ano. O trabalhador da construção, filho de um trabalhador da construção, que foi presidente do Sindicato de Construção da América do Norte durante 13 anos herda a tarefa árdua de ter de incentivar o emprego em momento de incerteza. Se alguém quisesse escolher a pior conjuntura para entregar o Trabalho a um sindicalista e vê-lo falhar seria difícil encontrar situação pior. “Os sindicatos são importantes porque construíram a classe média e podem preservar a classe média”, disse este filho de imigrantes irlandeses na sua primeira entrevista como secretário do Trabalho, dada ao Washington Post. “Quanto mais pessoas se juntarem aos sindicatos e a fazer trabalho sindical, mais gente veremos na classe média.”

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