Associações juntam-se numa campanha que quer mais investimento na primeira infância

Os primeiros mil dias de vida de um ser humano podem transformar o futuro. Por isso, várias associações, que têm a criança no centro da sua acção, vão reflectir sobre como se pode melhorar a qualidade de vida dos bebés.

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Unsplash/Picsea

Continua a ser um bebé, mas a proposta é para olhar para a minúscula criatura com uma visão do seu potencial: um ser humano em desenvolvimento que um dia terá nas mãos as decisões do mundo. E, diz a ciência, a forma como é tratado, física e emocionalmente, nos primeiros mil dias de vida ditará muito do seu futuro e, consequentemente, do futuro da sociedade. Este é um investimento com retorno: James Heckman, Prémio Nobel da Economia em 2000, que tem vindo a estudar a importância dos investimentos nos primeiros anos de vida, concluiu que estes darão um retorno de 7% a 10% por ano, tendo por base o aumento dos resultados escolares e profissionais, bem como a redução dos custos de educação correctiva, nos cuidados de saúde e nas despesas do sistema de justiça.

Problema: a primeira infância continua a enfrentar dificuldades e, em Portugal, segundo o último relatório da Unicef, 22 em cada 100 crianças vivem numa situação de pobreza. Resta encontrar a solução, que se começa a desenhar com o lançamento da campanha Primeiros Anos a Nossa Prioridade, que reúne mais de uma dezena de associações e que se dedicará, nos próximos meses, a elaborar um conjunto de propostas concretas para Portugal reforçar as medidas orientadas para o estímulo e apoio ao desenvolvimento infantil.

“Temos de ganhar mais consciência sobre a importância dos primeiros anos de vida individual, e colectivamente”, afirma Paula Nanita, do conselho executivo da Fundação Nossa Senhora do Bom Sucesso, considerando, em conversa com o PÚBLICO, que esta campanha “é uma oportunidade” para Portugal o fazer, em simultâneo com outros oito países europeus: Bulgária, Espanha, França, Finlândia, Hungria, Islândia, Roménia e Sérvia. O objectivo, explica a mesma responsável, passa por “influenciar as políticas públicas e o investimento público e privado de modo que todas as famílias tenham a possibilidade de promover um ambiente seguro, saudável e promotor do potencial de todas as crianças, a começar no nascimento”.

“Nós (as associações envolvidas que têm a criança no centro da sua acção) já andamos a fazer isto há anos, cada um para seu lado. Mas agora a ideia é agregarmo-nos, juntarmo-nos e com isso criarmos uma dinâmica de partilha e reflexão que ajude o país a despertar para a importância que têm os primeiros anos de vida”, declara.

Na base estarão estudos científicos que têm vindo a ser desenvolvidos e que mostram como pilares tão simples quanto a alimentação ou o toque podem vir a ser fundamentais na própria “arquitectura do cérebro” e na forma como se “desenvolvem as conexões cerebrais”. “Têm sido feitos muitos estudos que comprovam que a relação que se desenvolve com cada um de nós, desde o nascimento — e até desde a gestação —, é fundamental ao desenvolvimento cerebral”, recorda Paula Nanita. É nestes primeiros anos de vida e neste processo que a criança desenvolverá competências de auto-regulação e de empatia, que determinarão o modo como agirá perante o mundo. Por isso, partilhar este conhecimento será o primeiro passo para começar a desbravar caminho.

“Cascata de cuidados”

Ana Teresa Brito, formada em educação de infância e doutorada em Estudos da Criança, concorda, explicando que “já há uma base científica robusta” que nos faz olhar para “o bebé enquanto pessoa”, “valorizando a sua singularidade”. No entanto, a professora auxiliar no ISPA ressalva que não nos podemos esquecer que continua a ser um bebé — ainda que “os bebés de hoje sejam os adultos que vão cuidar da próxima geração” —, sublinhando o toque como essencial à estimulação cerebral.

A partir daqui, continua, é relevante “avaliar a realidade portuguesa” e perceber “o que podemos fazer” para melhorar a qualidade de vida dos primeiros anos, destacando a necessidade de haver uma “cascata de cuidados” ao bebé, mas também à família. “Cuidar dos pais é o primeiro passo para cuidar do bebé”, diz Ana Teresa Brito, que actua também como membro do Conselho de Administração da Fundação Brazelton Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé e da Família, parceira deste projecto lançado pela Fundação Bom Sucesso. Daí, sublinha, serem cada vez mais importantes as consultas pré-natais.

O apoio aos pais com filhos pequenos, nomeadamente com políticas laborais mais amigas da família, e o acesso universal à saúde e à educação são outros pontos-chave que poderão assegurar o crescimento num ambiente salutar. Mas também o investimento na formação e sensibilização de educadores e auxiliares de educação, promovendo creches que, se por um lado estarão “mais despertas para os cuidados afectivos que a criança necessita”, por outro “poderão ajudar os pais com menos informação de uma forma mais competente”.

Paula Nanita reforça este ponto, considerando que “a relação [do bebé] com os pais é vital, mas também com os outros cuidadores”, apontando a necessidade de formação destes cuidadores, sejam creches, amas ou outros. E isto torna-se ainda mais urgente quando deparamos com situações de risco: “É muito importante aprofundar a reflexão das dinâmicas que temos de gerar junto das famílias para evitar que cheguemos a situações-limite, como abandonos ou como retirada.” 

“Em Portugal, a maior parte das crianças que são retiradas às famílias, ou abandonadas, é institucionalizada”, lembra Paula Nanita, o que, prossegue, “contrasta com a maior parte dos indicadores europeus, porque toda a evidência científica vai no sentido de que uma criança dos zero aos três anos tem de estar num ambiente familiar: se não for na sua família, que seja noutra”, não sendo uma “instituição o ambiente adequado” ao desenvolvimento de um bebé. Por isso, avalia, há aqui “trabalho a fazer”, quer preventivo com as famílias, quer na orientação da criança para outra família. “E mesmo as que tiverem de ficar algum tempo em instituição devem ter adultos de referência para que haja relações privilegiadas.” 

A Fundação Nossa Senhora do Bom Sucesso é a promotora da campanha que, com o alto patrocínio do Presidente da República, conta até agora com parceiros como a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), Instituto de Apoio à Criança (IAC), Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), União das Misericórdias Portuguesas (UMP), Unicef Portugal, Associação de Estabelecimentos do Ensino Particular e Cooperativo (AEEP), Associação de Profissionais de Educação de Infância (APEI), Fundação Brazelton/Gomes Pedro, Fundação do Gil e Fundação Aga Khan. Um primeiro resultado, indicando alguns caminhos a serem seguidos, será apresentado em Setembro.

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