Istambul sem Istambul: a nova vaga de ameaças aos direitos da mulher

Em 2021, é preocupante ser necessário passar a mensagem de que tradições culturais, religiosas ou nacionais não podem servir como desculpa para ignorar a violência de género.

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Erdogan anunciou recentemente a intenção de retirar a Turquia da Convenção de Istambul, um dos tratados vinculativos mais importantes do mundo que visa prevenir e combater a violência contra as mulheres. Naquilo que é considerado o mais recente ataque ao estatuto da mulher, esta decisão gerou uma onda de indignação internacional e prevê-se que venha a reacender o debate sobre a importância e volatilidade dos esforços europeus para salvaguardar os seus valores fundamentais.

Penso que não deveriam ser necessários quaisquer dados estatísticos para justificar a protecção dos direitos humanos de metade da população, mas a violência contra as mulheres é de facto uma pandemia invisível que deve ser discutida. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que um terço das mulheres e raparigas do mundo sejam vítimas de pelo menos um tipo de abuso ao longo da vida. Isto diz-nos que um número significativo das mulheres com quem convivemos todos os dias — mulheres, avós, filhas, amigas e colegas — poderão constar deste grupo. Para além disso, isto indica que em pleno século XXI ainda precisamos, e talvez cada vez mais, de mecanismos internacionais que permitam a monitorização, protecção e responsabilização por ameaças ao estatuto de metade da população mundial.

No caso da Turquia, o mecanismo em questão é a Convenção de Istambul do Conselho da Europa, acção comum europeia focada na violência contra as mulheres e, mais especificamente, na violência doméstica. Este acordo, publicado em 2011 na cidade turca homónima, visa estabelecer mecanismos de protecção, prevenção, repressão e, em última instância, a eliminação de todas as formas de violência contra as mulheres. Istambul inclui ainda medidas específicas para a situação de migrantes, refugiados e mulheres que procuram asilo.

O percurso de implementação da Convenção de Istambul na União Europeia tem sido marcado por avanços significativos e percalços preocupantes. Por exemplo, o acordo foi já assinado por todos os países, mas ratificado apenas por 21. Este atraso pode ser justificado por se tratar de um documento relativamente recente e porque o grupo de peritos (GREVIO) que monitoriza a sua implementação está em funcionamento apenas há cinco anos. No entanto, a resistência às políticas de igualdade de género foi já identificada como factor de impedimento. O primeiro relatório geral analisou os principais desafios emergentes da implementação da Convenção pelos 27 e identificou, como um dos factores mais decisivos, a negação categórica das conexões entre desigualdades estruturais de género e violência contra as mulheres.

Para além disso, e apesar de ser um documento importantíssimo que elenca mudanças sociais progressistas, à medida que as correntes populistas e nacionalistas ganham balanço na Europa também a Convenção se tem tornado num alvo estratégico. Tal como tem sido reportado, na base da decisão de Erdogan estão preocupações conservadoras relativamente à unidade familiar tradicional, ao papel da mulher em casa, ao alegado encorajamento do divórcio e aceitação excessiva da comunidade LGBTQ+ na sociedade, o que é considerado uma ameaça à moralidade religiosa. Um pouco por toda a Europa, alas conversadoras têm denunciado as influências da cultura ocidental que consideram ser demasiado liberais.

Em 2021, é preocupante ser necessário passar a mensagem de que tradições culturais, religiosas ou nacionais não podem servir como desculpa para ignorar a violência de género. Seria de esperar ainda assim que em plena crise sanitária, durante a qual a incidência de violência de género e femicídio tem aumentado significativamente, os países reforçassem a sua preocupação com ameaças galopantes aos direitos humanos. Desde o início de 2020, António Guterres tem pedido à comunidade internacional que inclua um foco na violência de género nos seus respectivos planos de combate à covid-19. No entanto, a Turquia tem não só verificado um aumento alarmante de femicídios como opta agora por menosprezar os mecanismos de protecção contra esses mesmos abusos.

Nesta altura, a União Europeia tem uma responsabilidade acrescida enquanto atravessamos um período de crise sanitária, democrática e humanitária. Os nossos líderes têm o dever de usar este momento para frisar quais são os valores fundamentais que unem os 27 e para impedir violações ou excepções à regra. Por exemplo, é necessário desbloquear a implementação de Istambul na Bulgária, Chéquia, Hungria, Letónia e Eslováquia, mas também investir no compromisso com a nova Estratégia para a Igualdade de Género proposta pela Comissão Europeia. Outro obstáculo ao combate da violência de género é a falta de dados oficiais, pois estima-se que a incidência de violência contra as mulheres na União Europeia seja altamente subnotificada. Na Turquia, estima-se que tenham morrido mais de 300 mulheres em contexto de violência doméstica no ano passado. Dados igualmente alarmantes foram denunciadas um pouco por toda a União Europeia, mas o verdadeiro alcance do problema nunca será conhecido.

É importante relembrar ainda que o recente anúncio da Turquia acontece menos de um ano após Zbigniew Ziobro, actual ministro da Justiça polaco, ter demonstrado a mesma intenção, por considerar não haver necessidade de expandir as leis de protecção contra a violência. Devemos também reflectir sobre as causas e implicações destas perigosas mudanças cada vez mais cobiçadas pelas alas conservadoras europeias. Decisões políticas dignas de governos misóginos, reforçadas pelo alívio de responsabilidades internacionais neste caso, não constituem apenas uma ameaça directa aos direitos das mulheres na Turquia ou na Polónia: são também gestos simbólicos que abrem uma perigosa caixa de pandora e secundarizam o estatuto da mulher pelo mundo fora.

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