Becoming, de Michelle Obama, agora para jovens: “Porque é que falas como uma rapariga branca?”

Tenham a cor e a origem que tiverem, os jovens devem “tomar as rédeas do seu destino”. Esta é uma das ideias centrais de Becoming, a Minha História para Jovens Leitores, em que a autora lhes pede para não ficarem “demasiado presos ao brilho da Casa Branca”.

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Michelle Obama assina o seu livro numa sessão de autógrafos em Novembro de 2018 Kamil Krzaczynski/Reuters
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O casal com as filhas, Sasha (à esquerda) e Malia (à direita) na chegada a Martha's Vineyard, em Agosto de 2016 Jonathan Ernst/Reuters
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A ex-primeira-dama num projecto de apoio a jovens no Vietname Yen Duong/Reuters

O livro Becoming, a Minha História para Jovens Leitores, lançado nesta terça-feira em Portugal, começa com uma promessa da autora, Michelle Obama: “Contarei a minha história com todos os seus altos e baixos — a começar no momento em que me defrontei com uma pergunta difícil, à frente de toda a turma na creche, até ao meu primeiro beijo e às inseguranças que senti enquanto crescia, ao caos da campanha e à estranha sensação de apertar a mão da rainha de Inglaterra.”

Das brincadeiras de infância, à partilha do quarto com o irmão, à obsessão com o êxito, às inseguranças em diferentes fases da vida, às perdas dolorosas, às dúvidas sobre como lidar com o mundo em geral e o mundo “branco” em particular, ficamos a conhecer uma mulher afro-americana que frequentou as universidades de Princeton e de Harvard e conseguiu tornar-se advogada da Sidley & Austin. Foi nessa firma, em Chicago, que durante um Verão foi mentora de um novo associado. Seria com ele que viria a habitar a Casa Branca entre 2009 e 2017. 

Um Barack Obama desarrumado

Barack Obama, tal como uma das companheiras de quarto de Michelle, “amontoava os seus pertences e não sentia qualquer necessidade, nenhuma mesmo, de dobrar a roupa”. O que, para uma “maníaca por controlo”, como a autora se autodenomina, acabou por levá-la a aprender que “existem outras maneiras de ser e de estar”.

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O casal Obama em Fevereiro de 2018 Jim Bourg/Reuters

É esta disponibilidade constante para a aprendizagem e para o conhecimento, seja na vida académica ou na vida mundana, que quer transmitir aos jovens, tanto neste livro como na Public Allies, uma organização que prepara rapazes e raparigas para carreiras nos serviços públicos, e cuja sede de Chicago foi fundada pela ex-primeira-dama.

Michelle, agora Obama, convida os jovens a “reconhecerem que ninguém é perfeito, que o processo de crescer é o mais importante e que o nosso desenvolvimento pessoal está em constante evolução”.

Há duas perguntas que se impõem: “Quem és tu?” e “no que te queres tornar?”. No entanto, segundo a autora, “não faz mal não sabermos exactamente quem somos nem quem queremos vir a ser”. A resposta não é sempre a mesma ao longo do tempo nem o caminho tem de ser em linha recta. E alerta para como a opinião dos outros pode condicionar a vontade de se seguir caminhos diferentes.

Querer agradar aos outros

“Hoje reconheço que o facto de me querer tornar advogada deveu-se em parte ao meu desejo de querer a aprovação dos outros”, escreve. Essa atitude, revela mais adiante, pode “pôr-nos no caminho já estabelecido – o tal que nos dá direito a ouvir ‘ora vejam só, não é impressionante’ – e manter-nos nele durante muito tempo. Se calhar impede-nos de fazer um desvio, de arriscarmos, pois pôr em perigo a boa opinião que os outros têm de nós pode parecer um preço demasiado alto”.

Em várias passagens como esta, Becoming quase parece um livro de auto-ajuda para jovens inseguros, o que se percebe, já que traduz o percurso de uma rapariga que passou a juventude a questionar-se: “Serei suficientemente boa?” Alguém que aprendeu cedo que “o fracasso é um sentimento muito antes de se tornar um resultado real”. Por isso, algumas vezes, perante desafios e baixas expectativas de outros, pensava para si mesma: “Vais ver como é!” Conseguiu o sucesso a que se propôs e se dedicou, mas também se soube pôr em causa.

“Porque é que falas como uma rapariga branca?”

Os pais, Fraser e Marian, tudo fizeram para que Michelle e o irmão, Craig, rompessem e ultrapassassem a discriminação que os limitara social e profissionalmente no passado. Cada um à sua maneira transmitiu-lhes valores sólidos, incutiu-lhes responsabilidade, mas também alegria, amor pela vida e respeito pelos outros.

Sobre a generosidade do pai: “O tempo, aos olhos do meu pai, era um presente que dávamos aos outros.” Sobre o pragmatismo da mãe: “Não tens de gostar da tua professora (…) mas aquela mulher tem na cabeça a Matemática que precisas de ter na tua.”

Ensinaram-lhes ainda a articular as palavras com rigor até à última sílaba, valorizando a importância da dicção correcta “e de dizer going em vez de goin’ e isn’t em vez de ain’t”. Isso valeu a Michelle, apenas com dez anos, a pergunta incómoda num encontro da família alargada: “Porque é que falas como uma rapariga branca?”

Descreve ainda: “Falar de determinada maneira — da maneira ‘branca’, como alguns lhe chamavam — era entendido como traição, arrogância, uma certa negação da nossa cultura.” E recorda também: “Uns anos mais tarde, depois de ter conhecido e casado com o meu marido — um homem que para alguns é de tez clara e para outros tem a pele escura, que fala como um havaiano negro que foi criado por brancos da classe média do Kansas e se licenciou numa universidade de elite —, vi esta perplexidade a nível nacional, quer entre brancos, quer entre negros. Vi a necessidade que as pessoas têm de se definir em relação à sua etnia ou à cor da sua pele. A América colocaria a Barack Obama as mesmas questões que a minha prima me fez, inconscientemente, naquele dia nas escadas: ‘És o que pareces ser? Posso confiar em ti ou não?’”

Também ela, por instantes, se terá perguntado se poderia confiar no namorado recente Barack Obama quando este a foi buscar num “carro amarelo-banana, com a frente achatada, que comprara em segunda mão com o pequeno orçamento de estudante” e que avançava aos solavancos. Isto para não falar num “buraco com cerca de dez centímetros, causado pela ferrugem, no chão do carro”, através do qual se podia ver a estrada a passar por baixo. Como é sabido, acabou por confiar nele. Estão casados há perto de 30 anos.

Naturalmente que o livro entra depois pela Casa Branca, pela tomada de posse, pelos bailes, vestidos, protocolos e cerimónias. Também relata o nascimento e crescimento das duas filhas do casal, Malia e Sasha. Tudo episódios descritos com sinceridade e emoção, mas também contenção. Talvez por isso o título original, publicado em 2018, tenha vendido mais de 15 milhões de exemplares em todo o mundo ou talvez também por ter sido seleccionado para o Clube de Leitura de Oprah.

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Lançamento do livro com Oprah Winfrey, a 14 de Novembro de 2018 Kamil Kzaczynski/Reuters

Certo é que a primeira edição esteve mais de cem semanas no top do The New York Times e o audiolivro lido por Michelle Obama ganhou um Grammy para Best Spoken Word Album. Também o documentário que a acompanhou na digressão de lançamento por 34 cidades recebeu boas críticas quando foi divulgado na Netflix, no ano passado.

“Deixei de tentar sequer sorrir” na tomada de posse de Trump

No Epílogo, Michelle fala com delicadeza e boa educação da saída da Casa Branca e da tomada de posse do Presidente seguinte. “Eu e Barack saímos da Casa Branca pela última vez a 20 de Janeiro de 2017, acompanhando Donald e Melania Trump para a cerimónia de tomada de posse. Naquele dia, sentia tudo ao mesmo tempo: cansaço, orgulho, angústia, ansiedade. Porém, a maior parte do tempo tentava apenas manter-me firme, porque sabia que as câmaras de televisão seguiam cada gesto nosso. Eu e Barack estávamos decididos a fazer a transição com elegância e dignidade, a terminar os nossos oito anos com os ideais e a compostura intactos. Tínhamos chegado à hora final.”

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Os casais Trump e Obama na tomada de posse de Donald Trump a 20 de Janeiro de 2017 Jonathan Ernst/Reuters

No entanto, esta atitude, segundo Michelle Obama, foi de certa forma desmoronando-se durante a cerimónia: “Sentados no palco da tomada de posse em frente do Capitólio pela terceira vez, esforçava-me por conter as emoções. A vibrante diversidade das duas tomadas de posse anteriores desaparecera. No seu lugar, via-se o tipo de multidão esmagadoramente branca e masculina que tantas vezes encontrei na minha vida — particularmente nos espaços mais privilegiados, nos quais de alguma maneira me movi desde que deixei a minha casa de infância. (…) Apercebendo-me disso, fiz o meu ajustamento de imagem: deixei de tentar sequer sorrir.”

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Durante a tomada de posse de Donald Trump em 2017 Carlos Barria/Reuters

Mas a autora quer terminar o seu livro de forma esperançosa, pelo que lembra, convictamente: “Há retratos de mim e de Barack expostos na National Portrait Gallery, em Washington, facto que nos honra. Duvido de que alguém, ao olhar para a infância de cada um de nós, tivesse alguma vez adivinhado que iríamos parar a um museu de arte. Os quadros são maravilhosos, mas o mais importante é estarem ali para serem vistos por jovens e que os nossos rostos ajudem a mudar a ideia de que, para sermos inscritos na História, temos de ter determinado aspecto. Se nós pertencemos ali, então muitos outros podem pertencer.”

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Durante a apresentação dos quadros, a 12 de Fevreiro de 2018 Jim Bourg/Reuters

A promessa inicial aos leitores de que contaria a sua história “com todos os seus altos e baixos” foi cumprida. Mas o casal Obama ainda nos desafia: “O que é melhor para nós? Resignarmo-nos com o mundo tal como ele é ou trabalharmos para pôr o mundo como ele devia ser?” A escolha é nossa.

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