A guerra de África

Ouvir as razões dos que combateram na guerra de África, dos dois lados, não é fazer a apologia ou condenar uma das partes. É fazer jornalismo, respeitando o princípio sagrado do contraditório. Um jornal não é um panfleto.

A colonização, o racismo e a descolonização estiveram presentes, com maior ou menor intensidade, no debate público promovido nos países europeus que tiveram um império colonial, sobretudo a partir de 1960, ano em que a maioria dos países africanos acedeu à independência. Esse debate ganhou uma ênfase particular desde a morte, por asfixia, do negro George Floyd às mãos de um polícia branco, nos Estados Unidos, em Maio de 2020. Das ideias para o terreno, a morte de Floyd esteve na origem de manifestações de rua, frequentemente violentas, e do derrube de estátuas nos dois lados do Atlântico. Em Portugal, o movimento atingiu o seu ponto mais alto com a vandalização da estátua do Padre António Vieira, em Lisboa.

A paixão desencadeada por estes acontecimentos – os históricos e os da actualidade – tem originado tomadas de posição de quase todos os que opinam na imprensa portuguesa. A polémica em torno dos brasões do jardim da Praça do Império ou dos méritos e deméritos do coronel Marcelino da Mata são os exemplos mais recentes desse fenómeno. Mas não são os únicos. No mesmo domínio, o projecto de erguer, no Porto, um memorial aos Combatentes do Ultramar, e a forma como ele foi noticiado pelo PÚBLICO online num artigo assinado pela jornalista Maria Monteiro (“Memorial do Porto aos Combatentes do Ultramar ‘merecia debate público’”, 6 de Março de 2021), originou um protesto do leitor Miguel Teixeira Bastos.

“Trata-se de um artigo meramente político e não jornalístico, na medida em que foram buscar pessoas afectas unicamente a um partido (…)” que se opõe à construção do memorial. E continua o leitor: “O artigo procura exprimir uma opinião e não um retrato jornalístico, na medida em que colecciona declarações a favor de uma visão do assunto, apenas contrariada por uma opinião da associação que defende o monumento. Para fazer um artigo imparcial, pelo menos esperava-se de um jornal como o PÚBLICO que promovesse o debate em igualdade e não em total assimetria.”

Enviei o protesto do leitor à jornalista Maria Monteiro, que “aceita e reconhece a validade da crítica feita”, bem como a “assimetria que o leitor refere”. É um desequilíbrio que a jornalista se propõe corrigir numa futura notícia, quando o memorial estiver concluído.

Perante o exposto, o provedor estima que o texto em causa é um exemplo do que o jornalismo anglo-saxónico classifica como a one side view, uma visão unilateral do tema abordado. Não tanto pelas partes ouvidas – que foram todas –, mas pela matéria sobre a qual foram ouvidas. Ao contrário dos que se opõem à construção do memorial por razões históricas e políticas, nem a associação promotora do projecto nem a Câmara do Porto foram questionadas sobre os motivos que, nesse plano, levaram à decisão de o erguer.

Este caso é um ponto de partida para uma breve reflexão geral sobre o modo como as questões da “actualidade histórica” – neste caso, e em concreto, a guerra de África – têm vindo a ser tratadas no plano jornalístico, onde frequentemente se confundem as motivações políticas e ideológicas dos litigantes com a realidade dos que foram obrigados a combater. A apetência mediática pelas controvérsias é sobejamente conhecida e, no caso desta guerra, ela é sublimada pelo tribalismo primário das “redes sociais” que alimentam a industrialização da cretinice. Da conjugação destes dois factores resulta um exacerbar das tensões sociais e a pretensão de obrigar o cidadão a posicionar-se: escolhe o teu lado da barricada!

Ora, se compete aos jornais fazer eco do debate público, não compete ao jornalista tornar-se o porta-voz de qualquer uma dessas posições, em detrimento da outra. A realidade histórica raramente é feita a preto e branco, sobretudo quando se trata da História recente, com muitos dos intervenientes que contribuíram para a sua escrita, de ambos os lados, ainda vivos. Com a agravante de que estamos a falar de uma guerra de guerrilha que, pela sua natureza, raramente respeita as leis da guerra. Longe vão os tempos das guerras de cavalheiros, quando, na batalha de Fontenoy, os comandantes dos exércitos inglês e francês tiravam o chapéu emplumado e pediam ao adversário o favor de disparar primeiro.

Ao abordar acontecimentos da História recente, o jornalista, que a eles não assistiu – contrariamente ao que acontece numa reportagem de actualidade –, tem obrigatoriamente de “ouvir” todas as partes envolvidas, tanto mais que, como se sabe, a História é sempre escrita pelos vencedores e reflecte o ponto de vista deles. Um bom exemplo de como a imprensa independente deve proceder em relação à guerra de África é a longa série A Guerra, da autoria do jornalista Joaquim Furtado, que foi provedor do leitor do PÚBLICO em 2004. “Historiador do tempo presente”, de acordo com a expressão consagrada, o jornalista deve respeitar escrupulosamente o princípio do contraditório quando faz incursões no passado recente, sob pena de minar a sua credibilidade. Se Homero fosse jornalista, teria falhado a Ilíada e a Odisseia, “reportagens” em que não ouviu as razões de Helena…

Temos, pois, que o jornalista, ao meter a foice na seara dos historiadores, é obrigado a ter cuidados redobrados. No seu ensaio O jornalismo: uma história sem historiador (Communication & Langages), Vincent Quivy, que é, ao mesmo tempo, jornalista e historiador, escreve: “A evolução recente e diametralmente oposta que sofreram estas duas disciplinas faz com que a História seja cada vez mais uma ciência, com o que isso implica de rigor e de trabalho, ao passo que o jornalismo, largamente influenciado pelos media audiovisuais, responde cada vez mais a exigências de rapidez e de síntese que prejudicam a pesquisa e a reflexão. Se compararmos o estado actual da ciência histórica com as dificuldades que atravessa o mundo do jornalismo há já alguns anos, temos de nos interrogar sobre o contraste entre uma ciência que não pára de evoluir e de reflectir sobre si própria, e um mundo entrincheirado nas suas certezas, que rejeita pôr-se em causa e perde pouco a pouco toda a sua credibilidade.”

No caso concreto do PÚBLICO, salvo quando, como explicitado no Livro de Estilo, estão claramente em causa os valores da democracia e os contidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, não pode o jornalista deixar-se instrumentalizar nem lhe compete conduzir, no plano noticioso e a posteriori, campanhas a favor ou contra os guerrilheiros africanos ou os soldados que serviram sob a bandeira de Portugal na guerra de África. É para isso que existem as colunas de opinião, claramente identificadas como tal e que apenas comprometem o seu autor, sem comprometer um jornal que diariamente luta para afirmar a sua independência.

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