Subida do Rt devido a casos na Madeira é “artificial” e não pode servir para decidir sobre desconfinamento

Falha informática levou a acumulação de casos da Madeira por comunicar. Foram notificados depois todos na mesma semana. Rt nacional subiu, mas Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto desvaloriza.

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Ines Fernandes

Um atraso na comunicação de dados referentes a novos casos de covid-19 na Madeira, e o consequente ajuste ocorrido durante a semana passada e o seu envio em massa, originou subitamente um aumento de casos no arquipélago contabilizados nos boletins diários da Direcção-Geral de Saúde (DGS). Resultado, o Rt, o índice de transmissibilidade do vírus, disparou para valores acima dos 0,9 a nível nacional. Se for superior a 1,0, significa que o número de casos diários está a aumentar. Isto, numa altura em que o Governo se prepara para anunciar o plano de desconfinamento.

O investigador do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), Milton Severo, confirma ao PÚBLICO esse aumento do Rt, mas desvaloriza-o. “Face a incidências baixas de casos, como acontece presentemente no país, os dados demonstram que o Rt não é suficiente para uma tomada de decisão [sobre o desconfinamento]”, explica. Milton Severo, dá um exemplo. “Se num dia tivermos 20 casos e no dia seguinte 40, teremos um Rt elevado, mas na prática poucos casos activos.” O que acontece, continua, é que, quando temos poucos casos, basta um pequeno surto, por exemplo, num lar, para o Rt subir. “Neste caso, não foi um surto, mas um atraso no reporte de dados da Madeira, que está a originar um aumento artificial do índice.”

Por isso, o ISPUP aconselha prudência e prefere aguardar pelo menos mais uma semana, para voltar a olhar para o Rt. “É preferível deixar os casos estabilizarem, pois, como foi um aumento artificial, será rapidamente corrigido”, defende Milton Severo, acrescentando que por esse motivo o ISPUP não irá calcular o Rt da Madeira nos próximos dias.

Também o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) considera os valores empolados. Mesmo assim, sabe o PÚBLICO, o valor do Rt, que será divulgado esta sexta-feira, ficará abaixo dos 0,9.

Na Madeira, as autoridades de Saúde recusam assumir toda a responsabilidade pelo atraso na comunicação de novos casos, pois, disse ao PÚBLICO fonte do gabinete do secretário regional de Saúde e Protecção Civil, Pedro Ramos, o problema informático que originou a falha de comunicação foi comum aos dois laboratórios: o da Madeira e o do continente.

Madeira e DGS não se entendem na contagem de casos de covid

Recusam também os números que estão a ser divulgados diariamente pela DGS, principalmente nos últimos dias. Os valores não batem certo praticamente desde o início da pandemia, mas esta semana a diferença entre o número de novas infecções pelo SARS-CoV-2 divulgadas pela DGS em relação à Madeira e os dados anunciados pela autoridade de Saúde do arquipélago foi maior. Tanto que a Secretaria Regional de Saúde e Protecção Civil veio reclamar da discrepância dos dados, apontando o impacto negativo que os números reportados pela DGS têm no esclarecimento da opinião pública madeirense, e no sector do turismo, o motor económico da região autónoma.

O presidente do governo madeirense, Miguel Albuquerque, considerou esta quinta-feira, “surreal” os cálculos da DGS. “Não consigo perceber como é que eles chegam àqueles números”, disse aos jornalistas à margem de uma visita à zona oeste da ilha, lamentando a imagem que é transmitida pelos relatórios da DGS. “Afecta a imagem da Madeira, porque parece que isto está tudo de ‘pernas para o ar’ e não está”, afirmou, considerando que é melhor a DGS deixar a Madeira de fora dos balanços diários.

Antes, já na semana passada, o governo madeirense tinha reagido ao súbito aumento de casos reportados pela DGS, que contrastavam com os números bem mais reduzidos que a Direcção Regional de Saúde (DRS) divulga todos os dias. “Os números indicados são geradores de desinformação junto da população e são prejudiciais para a dinâmica do sector do turismo na região”, protestou o gabinete de Pedro Ramos, vincando que os “números fidedignos” são os que são reportados todos os dias pela DRS: “De forma clara, segura e transparente.”

Nesse dia, sexta-feira, dia 5 de Março, a DGS avançou com 163 novos casos de covid-19 para o arquipélago e ao final da tarde – os relatórios da Madeira são divulgados sempre a partir das 18h – a autoridade de Saúde madeirense reportava apenas 46. 

Mas a discrepância entre os relatórios emitidos em Lisboa e no Funchal começou uns dias antes, quando a DGS reportou 140 casos no dia 2 de Março, outros 140 no dia seguinte, e 106 no dia 4. Mais do dobro do que a DRS contabilizou nesses três dias. As diferenças continuaram nos dias seguintes, motivando novo comentário da autoridade de Saúde regional a 6 de Março, dia em que a DGS reportou 288 novas infecções pelo coronavírus, quando a Madeira só reconhecia 59.

“A discrepância dos números divulgados pela DGS, com um grande diferencial temporal, é geradora de desinformação junto da população e é prejudicial para a gestão de toda esta situação pandémica na Região Autónoma da Madeira”, repetiu a Secretaria Regional de Saúde.

Na origem deste problema, explica ao PÚBLICO o gabinete de comunicação da DGS, estiveram problemas informáticos que resultaram numa deficiente comunicação dos resultados dos testes laboratoriais efectuados na Madeira. A situação originou atrasos nas notificações, que foram “progressivamente introduzidas no sistema”, que as assumiu, como sendo novos casos.

“Neste momento, o problema já se encontra resolvido”, garante a mesma fonte, sublinhando a “confiança” da DGS nos dados fornecidos diariamente relacionados com a pandemia de covid-19 e considerando normal a ocorrência de atrasos na notificação laboratorial. “Rondam os 10% dos casos confirmados, com variações decorrentes do dia da semana”, quantifica a DGS, reiterando que são seguidas as melhores práticas da União Europeia, no reporte dos casos, que são introduzidos no Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE).

Estas variações ajudam a explicar as diferenças diárias entre o relatório da DGS e as informações que tanto a Madeira, como os Açores divulgam. No arquipélago açoriano os números da covid são também dissonantes dos reportados em Lisboa, mas as flutuações diárias não chegam para problematizar a questão. Mesmo assim, os totais têm diferenças consideráveis. A Direcção Regional de Saúde local contabiliza até à data 3921 casos de covid, que resultaram em 29 mortes. A DGS conta 3805 e menos um óbito.

Em relação à Madeira, a diferença é maior: 7719 casos e 67 óbitos, números do Funchal; 7935 casos e 64 mortes, dados da DGS. Estes valores podem não parecer significativos, mas segundo fonte do gabinete de Pedro Ramos foram suficientes, esta semana, para empolar o índice de transmissibilidade (Rt) do vírus na Madeira, o que tem implicações no turismo.

A DGS desvaloriza. “Apesar das discrepâncias nos números que possam ocorrer, é realizada toda a acção necessária para garantir o isolamento e seguimento clínico adequado dos casos e o rastreio dos contactos”, garante, explicando que na introdução de dados no Sinave (Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica) e no SICO (Sistema de Informação dos Certificados de Óbito), é utilizada a morada da ocorrência dos casos, mas, quando esta é omissa, fica a morada que consta no Registo Nacional de Utentes (RNU).

“A diferença de 3% no total de casos confirmados poderá ser explicada, na sua maioria, pelos casos [de pessoas] que moram no continente, mas continuam com morada do RNU na Madeira e em que não existiu uma correcção da morada pelo médico notificador. A mesma explicação existe na alocação das mortes covid-19 às regiões.”

Já a Madeira contabiliza para os números da pandemia no arquipélago os casos referentes a cidadãos residentes, com residência fiscal na região autónoma, e turistas que tenham um teste positivo à covid-19 à chegada ao Funchal.

Além da questão das moradas, a Madeira aponta a duplicação de notificações que é feita pelo sistema nacional, que muitas vezes assume como múltiplas infecções casos em que o mesmo paciente tem várias vezes um teste positivo, antes de estar recuperado.

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