Discotecas dizem adeus ao Cais: “As memórias não mudam de sítio”
Jamaica, Tokyo e Europa já têm tudo empacotado para começar uma vida nova junto ao rio. Não houve a última grande noite na rua que ajudaram a pôr no mapa, ficam recordações e muita vontade de futuro.
Não era assim que devia ter acontecido. Na cabeça de Fernando Pereira estava delineado um plano que unia o passado ao futuro sem grandes sobressaltos. “A ideia era fazermos a última noite aqui e alugarmos uns autocarros para levar as pessoas até ao novo espaço.”
Mas esta foi mais uma coisa que a pandemia roubou. Os frequentadores fiéis do Jamaica, do Tokyo e do Europa não puderam despedir-se. Quando as pistas de dança reabrirem, encontrarão estes três bares num sítio novo, à beira-Tejo. Mais espaçosos e mais seguros, nos armazéns do Cais do Gás é uma nova história que se escreve.
“As memórias não mudam de sítio”, comenta Mário Dias, o DJ histórico do Jamaica, enquanto dá uma olhada em volta. As arrumações começaram há poucas semanas. O que ainda não saiu está encaixotado e bem arrumado a um dos cantos da pista, junto à cabine que Mário ocupou noites a fio. “Aconteceu aqui muita coisa”, alguém comenta. Resposta dele: “Ui, ui!”
As suas mãos ajudaram a moldar uma forma de estar na noite lisboeta. De zona mal vista a paragem obrigatória, o Cais do Sodré nocturno fez-se muito graças a estas três casas. A sua mudança para o outro lado da linha férrea era ponto assente há vários anos, desde que o proprietário do edifício anunciou a intenção de o converter em hotel e desde que a Câmara de Lisboa se comprometeu a encontrar sítios novos para as discotecas.
“Está praticamente tudo tratado, à partida a obra começa ainda este mês”, diz Fernando Pereira, dono do Jamaica e do Tokyo. Das suas palavras transparece o entusiasmo com que encara a mudança. Quando a Rua Nova do Carvalho foi pintada de cor-de-rosa, no princípio da década passada, o empresário anteviu que a era dourada do Cais do Sodré não duraria para sempre. Aconteceu o mesmo em todo o lado: Alcântara, Docas, 24 de Julho, Santos. “A rua deu um salto brutal em termos de reconhecimento”, admite.
Nos últimos tempos antes da pandemia, porém, a zona já estava a sair de moda. A reabilitação de alguns edifícios que antes estavam muito degradados levou ao fecho de casas que deram fama ao Cais e nova oferta surgiu noutras partes da cidade. “O Jamaica está muito ligado a este sítio, a esta rua. Mas o tempo não pára, há que seguir em frente e recomeçar com mais gás”, diz Mário Dias, chamando a atenção para o trocadilho entre o que acabou de dizer e o sítio para onde os três bares se vão mudar.
É claro, acaba por reconhecer Fernando Pereira, que lhe custa um bocadinho este processo. “Aos 15 anos já estava a ajudar o meu pai atrás do bar”, recorda. E foi lá que aprendeu muito sobre a vida. “Isto é uma escola.”
Mais caótico do que o Jamaica e o Tokyo – onde as paredes ainda têm capas de discos dos Nirvana, Pink Floyd, Supertramp e The Doors, entre outros –, no Europa o tempo parece suspenso. Ainda há cervejas no balcão, uma garrafa gigante de vodka, carimbos e blocos de notas com o número de senhas vendidas na noite anterior.
Essa noite, afinal, foi há muitas noites. “O último dia em que esta casa abriu foi a 18 de Março de 2020”, informa Rui, primo do dono, Pedro Vieira, e trabalhador ocasional neste bar. “Pois é, este Europa já era”, comenta, cigarro quase apagado ao canto da boca, à medida que vai guardando as últimas coisas para levar. Quase tudo o que era importante já saiu. A pista está impraticável, tal a quantidade de quinquilharia. Afinal, embora não pareça, a casa existe desde 1947. “Isto agora é tudo para carregar directo para a sucata.”
Uma curiosidade: poucos anos depois da abertura, o Europa foi remodelado segundo projecto do arquitecto Cassiano Branco. Atrás do balcão existe um alçapão que conduz a uma cave nauseabunda, onde se guardam mesas velhas, holofotes e equipamento velhíssimo e enferrujado. Há uma colecção de CD carcomidos pela humidade, mas há também um antigo cofre embutido numa parede e umas escadinhas interrompidas que testemunham essa outra encarnação do bar.
Não há saudades na boca de Rui. “O outro sítio tem quase o dobro do tamanho deste. Acaba por ser bastante melhor. E vai ser uma coisa diferente”, diz, referindo a possibilidade de abrir também durante o dia para, por exemplo, servir refeições. O Europa será o único dos três espaços a ter uma porta directamente para o rio.
“Ouve lá, o outro lado é para aí o triplo!”, comenta Mário Dias. “Pois é, mas pode ter este tamanho”, responde Fernando Pereira. Foi a sua mão que desenhou o projecto para os novos espaços no Cais do Gás, que por ora são um depósito de barcos velhos. No Jamaica será possível aumentar ou diminuir a pista de dança consoante o movimento de cada noite. “Decoração simplicíssima, não há cá berloques”, esclarece. “O Jamaica vive do público. Entra-se no Jamaica para se curtir a música, para se beber um copo e para se divertir com os outros, mesmo que não os conheçamos.”
E isso, assegura, é válido em qualquer sítio. Que comece The Last Waltz.