Não há cimbalino nem bica – já tem o seu dealer?

Cerca de 80% dos portugueses consome café. Com a restrição de venda pela restauração, seja na máquina de vending ou através de um contacto privilegiado, há quem não passe sem o cafezinho. Mas sem ajuntamentos.

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PAULO PIMENTA

De porta aberta com duas mesas a barrar a entrada para o estabelecimento continua-se a vender pão e outros bens de primeira necessidade numa de muitas das confeitarias do Porto. Uma das funcionárias posiciona-se junto à barreira improvisada à espera dos clientes. Há um que se aproxima e, com todo o recato possível, diz entre dentes: “São quatro”. Do outro lado, a desmerecer todo o investimento do homem, deixa-se de lado qualquer secretismo e ouve-se em voz alta: “Quatro quê? Quatro cafés?”. Com ar de quem sentia fazer parte da rede mafiosa mais perigosa da Invicta e arredores, com algum embaraço à mistura, o homem acena com a cabeça afirmativamente. “Eu chamo já para virem buscar”, respondem-lhe.

Desde o início do segundo confinamento, em Janeiro, não há cimbalino nem bica na rua. Não há café para ninguém em estabelecimentos do sector da restauração que se mantêm de portas abertas. Nem em take-away, nem ao postigo de restaurantes, cafés ou padarias - pelo menos em teoria. Mas num país em que 80% dos portugueses consome café, (dados da Associação Industrial e Comercial do Café), sendo que muitos fazem-no fora de casa, como estão os portugueses a lidar com a quebra de uma rotina tão enraizada na nossa cultura? Aparentemente, não o podem fazer fora de casa. Mas, na prática, há quem consiga. A corrida ao “tráfico" do café começou mal foi decretado novo confinamento que durará até serem levantadas as restrições. Aproveitando algumas excepções ou beneficiando da confiança de um comerciante mais aventureiro, há quem vá conseguindo beber o seu expresso. Mas longe do balcão e sem ajuntamentos.

É o caso de Manuel Teixeira, que está na pausa de almoço a beber um dos cafés que o colega tinha acabado de pedir com discrição. Uma demanda que acabou se tinha revelado infrutífera no estabelecimento ao lado. Encostado a uma parede, copo de plástico na mão, queixa-se da “ginástica” que tem sido obrigado a fazer nos últimos meses para conseguir cumprir um ritual que conserva há muitos anos. “Bebo três cafés por dia, um de manhã, outro à hora de almoço e outro à noite”, conta. Como é que tem conseguido continuar a fazê-lo? “De manhã consigo pedir numas bombas de gasolina perto de casa. Ao almoço vou-me desenrascando com um ou outro sítio onde me conhecem. À noite bebo em casa”, conta. 

Se não tomar café diz “passar mal”. Porém, defende que escusava de se submeter a esta espécie de “actividade clandestina”, se não tivessem passado o café para a lista de artigos que não se podem vender. “Bebidas alcoólicas até percebo porque junta gente. Mas o café bebe-se num instante. É pedir, beber e andar. Ou até podiam vender em copos de plástico”, sugere, enquanto segura um já vazio.

Eduardo Silva tomava o mesmo número de cafés por dia - três. Veio o confinamento e deixou de tomar, certo? Errado. Então também vai a um estabelecimento que continua com a máquina ligada para alguns clientes? Não. Não precisa de contar com a ajuda de alguém que facilite o processo. Então como é que consegue continuar a beber pelo menos três cafés por dia? “É fácil. Desço à estação do metro e vou à máquina”, explica. “Tem galão, café, tem tudo. É só pôr a moeda”. Na altura do dia em que falamos, também à hora de almoço, na pausa do trabalho, já tinha ido beber dois. 

Outra sorte tem um grupo de profissionais que fuma em frente à entrada do local de trabalho, antes de retomar a actividade, depois da pausa. Não é uma questão que lhes faça diferença. Lá dentro há máquina de café para os funcionários.

“Faz falta a quem trabalha fora de casa”

“Não contem comigo para vender café”, diz Aníbal Fonseca, proprietário do Pão Quente Muralhas do Olival, enquanto regista na caixa registadora mais uma refeição para sair em take-away. “Tenho a máquina desligada desde que entramos em confinamento”, assegura. São muitos os que ali vão perguntar se não pode facilitar. A resposta diz ser sempre a mesma: “Não posso. Não quero ter problemas com as autoridades”. 

Não é fonte de receita principal, mas, ao fim do dia “nota-se sempre a diferença na caixa”. Acredita que podia-se chegar a um entendimento e abrir uma excepção para a venda do café. “Era possível fazê-lo. Incluía-se nas excepções de take-away”, atira.

Vítor Aleixo, da Cafetaria dos Clérigos, concorda com esta solução. “Era pegar e andar”, afirma. Mas também não se opõe à possibilidade das pessoas poderem beber no estabelecimento, mas no exterior. A proibição da venda de café considera afectar sobretudo quem continua a trabalhar fora de casa - quem não pode ficar em teletrabalho. 

E é por isso, que, noutra zona da cidade, há quem continue a vender, mas de “forma controlada”. Dizem-nos que o fazem sobretudo de manhã cedo, quando ainda não há tanto movimento. Os clientes são sobretudo pessoas que trabalham nas imediações. Porém, depois da hora do almoço garantem não continuar a vender. “Desliga-se a máquina”. 

Noutro estabelecimento há quem esteja em absoluto desacordo com a medida. No interior do espaço sente-se o cheiro a café no ar, mesmo com a máscara colocada. Há quem peça um. O proprietário tira-o com a maior rapidez possível para se posicionar, logo a seguir, na porta, de forma a garantir que o cliente toma o café descansado, sem problemas com as autoridades para as duas partes. “Parece que andamos a fugir da PIDE”, ouve-se. O proprietário não concorda com a restrição, mas também garante que, na maior parte do tempo, tem dado descanso à máquina de café. “Só sirvo a quem conheço e com segurança para que ninguém se junte”, assegura.

O que causa estranheza aos “cafeinómanos" - na expressão castelhana - é poder beber em qualquer sítio, seja bomba de gasolina ou instituição, que tenha uma máquina de café que funciona com moedas. A sua localização é uma informação preciosa para quem não passa sem o escuro líquido. “Ai que agora já nem pode beber um café mas já encontrei um sítio”, diz, orgulhosa do seu conhecimento, uma taxista de Lisboa. “Vou buscá-lo ao Hospital São Francisco de Xavier”.

Mais dificuldades para satisfazer este hábito tem Maria Felisbela Magalhães, que estava ao balcão do Muralhas do Olival à espera de uma sopa que encomendou para o almoço. Das primeiras coisas que fazia sempre que saía do autocarro era tomar um cimbalino. “Ia sempre a outro café que também é destes senhores”, conta. “Agora não sei onde é que posso tomar”, acrescenta. 

Não concorda com a restrição, mas “que remédio” tem de cumprir. Continua a tomar três cafés por dia, mas agora já não o faz na rua. “Agora tenho que fazer em casa numa cafeteira de atarrachar. Às vezes faço noutra mesmo de cimbalino”, atira. Diz que “não sabe ao mesmo”, mas, por agora, é a única solução que diz ter. A fazer contas aos dias que faltam para o desconfinamento, diz ansiar por dias melhores: “Estou mortinha por me sentar numa esplanada a beber um cimbalino”.

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