Cientistas portuguesas caracterizam possível alvo terapêutico para combater a covid-19

Combinação de modelo computacional e estudo bioquímico dão pistas cruciais para se atingir um certo alvo no SARS-CoV-2 e enfraquecer este vírus, abrindo-se assim um possível novo caminho para combater a covid-19. Tudo aconteceu no Instituto de Tecnologia Química e Biológica, em Oeiras.

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Complexo das proteínas agora caracterizadas ITQB Nova

O Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) da Universidade Nova de Lisboa tem estado numa missão para transformar o SARS-CoV-2 de lobo em cão. Neste processo de domesticação do vírus, equipas do instituto conseguiram caracterizar uma proteína importante para a replicação deste coronavírus, a nsp14, a nível bioquímico e, depois, fizeram um modelo computacional. Desta forma, encontraram-se as “peças” que permitem silenciar essa proteína, o que pode ser usado no desenvolvimento de fármacos ou funcionar já em alguns existentes, para se combater a covid-19. Neste momento, no Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV), estão a ser feitos testes com vários fármacos e já há resultados promissores: conseguiu-se reduzir em cerca de 50% a replicação do vírus.

Todo este trabalho começou em Maio, no grupo liderado por Cecília Arraiano, no ITQB, em Oeiras, que tem como grande especialidade ribonucleases, proteínas que degradam e controlam os níveis de ARN. A ideia foi da investigadora Margarida Saramago. “Ela disse-me: ‘Ó professora, este vírus é de RNA e tem ribonucleases importantes para a replicação do vírus. A professora deixa-me pôr os nossos conhecimentos em prática?’” Cecília Arraiano disse a Margarida Saramago para seguir em frente e o trabalho avançou. Logo se juntaram também outras investigadoras a Margarida Saramago.

Tudo foi andando sobre rodas: já tinham a sequência de uma certa ribonuclease, fizeram mutantes do vírus em laboratório e tentaram arranjar fármacos para conseguir diminuir a acção dessa ribonuclease na multiplicação do SARS-CoV-2. O projecto ainda foi proposto num concurso dedicado à covid-19 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), mas não foi aprovado.

Mesmo assim, isso não as impediu de continuar a investigação e acabaram por conseguir purificar e caracterizar a proteína nsp14 do vírus, que é importante na multiplicação e no seu controlo de qualidade. No fundo, nesse controlo, verifica-se se há enganos no ARN (material genético). Conseguiram ainda caracterizar uma outra proteína (a nsp10), que pode formar um complexo com a nsp14 e fortalecer a função dessa proteína.

Qual o resultado? “Pela primeira vez, foi possível encontrar os aminoácidos [os tijolos das proteínas construídas pelas células] em que é preciso intervir para silenciar esse complexo [de proteínas]”, indica Rute Matos, uma das investigadoras envolvidas no trabalho, num comunicado do ITQB. “[A sua inactivação] torna mais fácil para o organismo identificar o RNA-mensageiro do vírus e activar o sistema imunológico para combater antes que esse se replique”, diz, por sua vez, Margarida Saramago. No instituto, estas investigadoras (e outras que também contribuíram) já são conhecidas como as “RNA girls”.  

A testar fármacos

Para ver espacialmente o que se tinha descoberto, entraram ainda em acção cientistas da área de modelação computacional do ITQB. Com base nas proteínas equivalentes do SARS-CoV-1 e com as informações do grupo de Cecília Arraiano, construiu-se um modelo tridimensional das proteínas nsp14 e nsp10, o que permitiu ter uma ideia concreta das suas formas, bem como prever quais são os aminoácidos mais importantes. “É como se tivéssemos feito um retrato-robô”, compara Caio Souza, um dos responsáveis pelo modelo. “Assim temos um mapa muito detalhado do alvo que devemos atingir com futuras terapias”, refere ainda Diana Lousa, outra das investigadoras envolvidas.

Ao juntar-se o estudo bioquímico e o modelo computacional das proteínas, conseguiram-se conhecimentos cruciais para se conseguir “silenciar” este novo alvo terapêutico. O alvo é então no vírus (mais exactamente numa proteína do SARS-CoV-2 com um papel importante na sua replicação) e pretende-se combater os efeitos da doença, a covid-19. “Ao silenciar esta proteína, poderemos converter uma doença grave numa constipação”, nota Cecília Arraiano. “É como se fôssemos transformar um lobo num cão.” Estes resultados serão publicados em breve na revista científica The FEBS Journal e já estão disponíveis online. No fundo, ao saber-se como se silencia essa proteína, vão poder desenvolver-se fármacos que ataquem essa parte do vírus ou procurar alguns já existentes que o consigam fazer, acabando-se assim por se enfraquecer o vírus – e, consequentemente, a doença.

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Representação de partículas do coronavírus SARS-CoV-2 NIAID

E Margarida Saramago conseguiu mesmo encontrar fármacos aprovados pela FDA (autoridade reguladora do medicamento dos Estados Unidos) com estruturas que poderão silenciar essa proteína. A investigadora começou por testar esses fármacos in vitro para ver se enfraqueciam a proteína e observou que alguns funcionavam na sua inibição. Agora, no laboratório de virologia do INIAV, Miguel Fevereiro e Margarida Henriques estão a testar in vivo vários desses fármacos, indica Cecília Arraiano. Os testes estão a ser feitos com vírus isolados de pacientes portugueses e em linhas de células vivas de rim de macaco, por serem susceptíveis à infecção por SARS-CoV-2. Outro dos motivos, segundo a equipa, para a escolha destas células é o de já terem sido usadas tanto na quantificação de SARS-CoV-2 infeccioso como em testes para detecção e determinação de níveis de anticorpos neutralizantes.

Quais os resultados, até agora? Sem querer revelar ainda muitos detalhes, Cecília Arraiano responde: “Já temos resultados muito bons. Já conseguimos reduzir a cerca de 50% a replicação do vírus.” Após confirmação destes resultados promissores, pretende-se obter uma patente para que as farmacêuticas possam começar a fazer ensaios clínicos. “Mesmo com a esperança da vacina, é fundamental conseguir identificar terapêuticas capazes de tratar os casos de infecção que continuarão a ocorrer”, considera Cláudio Soares, director do ITQB e também autor do trabalho. “É importante que este tipo de investigação seja financiado pelas instituições públicas.”

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