Amamentar deverá ser a regra numa nova situação pandémica, sugere grupo de trabalho da OMS

O aleitamento materno nunca deixou de ser recomendado pela Organização Mundial da Saúde, mas o afastamento de mães infectadas dos seus recém-nascidos chegou a ser visto como uma forma de controlar a propagação do vírus.

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O documento apoia “o contacto estreito entre mãe e lactante" Unsplash/Wes Hicks

As linhas orientadoras da Organização Mundial da Saúde (OMS) aconselham o aleitamento materno, assim como o contacto pele com pele entre mãe e recém-nascido, considerando estes dois essenciais na saúde futura de ambos. No entanto, no contexto da covid-19, e face ao desconhecimento geral em relação a um novo coronavírus, entidades de saúde pública de diversos países, Portugal incluído, chegaram a propor, como forma de controlar o surto, o afastamento entre as mães infectadas e os seus recém-nascidos assim como o desperdício do leite materno. Em Portugal, a situação acabaria por ser ultrapassada em Maio, quando a Direcção-Geral da Saúde apresentou uma revisão das suas directivas das quais desapareceu a ideia de deitar fora o leite.

Agora, uma equipa de especialistas publica na reputada revista científica The Lancet (e em nome dos grupos de trabalho da OMS Covid-19 - Rede de Investigação sobre Saúde Materna, Recém-nascido, Criança e Adolescente e Alimentação Infantil), uma abordagem de saúde pública para decidir a política de alimentação infantil e o contacto mãe-bebé no contexto da covid-19. A necessidade de um documento do género nasceu do facto de, face à preocupação quanto à possibilidade e efeitos da transmissão do SARS-Cov-2 entre mãe e bebé através da amamentação e do contacto próximo, terem sido criadas diferentes recomendações das associações de profissionais de saúde e das autoridades sanitárias nacionais.

“Com base em provas existentes”, para o grupo, que usou o modelo matemático Lives Saved Tool para mostrar como diferentes abordagens de saúde pública poderiam afectar a mortalidade infantil, “o número de mortes infantis devido à covid-19 em países de baixo e médio rendimento pode variar entre 1800 e 2800”. “Pelo contrário”, refere-se, “se se recomendasse às mães com infecção confirmada por SARS-Cov-2 que se separem dos seus recém-nascidos e evitem ou parem de amamentar, as mortes adicionais entre bebés poderiam variar entre 188.000 e 273.000”. Para estes cálculos não foram tidos em conta os países desenvolvidos.

No artigo, em que são apresentadas cinco ideias para uma política global a propósito deste tema, recorda-se a orientação da OMS, onde voltou a defender que “as mães com suspeita ou confirmação de covid-19 devem ser encorajadas a iniciar e a continuar a amamentar” e que “não devem ser separadas dos seus bebés”, alertando para o facto de a doença “em bebés e crianças representar um risco muito menor para a sobrevivência e saúde do que outras infecções e condições contra as quais a amamentação é protectora”.

Além disso, acusa o conjunto de especialistas, “as lacunas e ansiedades da pandemia e de provas relacionadas estão a ser exploradas de forma flagrante como uma oportunidade de marketing pela indústria de substitutos do leite materno”.

Um modelo para o futuro

Tendo em conta que “as futuras epidemias causadas por novos vírus envolverão provavelmente desafios semelhantes”, o grupo apresenta uma abordagem repartida em cinco pontos para que as entidades de saúde pública possam assumir uma posição concertada e consistente sobre os riscos e benefícios associados ao aleitamento materno à luz da potencial transmissão viral.

Em primeiro lugar, o documento apoia “o contacto estreito entre mãe e lactante e a amamentação por mães com infecção confirmada pelo SARS-CoV-2”, apesar de defender que estas usem “medidas de prevenção e controlo da infecção, incluindo a lavagem das mãos e o uso de máscaras faciais”. Isto porque, lê-se, “os benefícios de sobrevivência do aleitamento materno superam substancialmente os muito baixos casos de mortalidade notificados entre as crianças diagnosticadas com covid-19”.

Depois, os especialistas exortam as autoridades de saúde pública a “considerar todo o âmbito das provas e implicações para a mortalidade infantil de todas as causas e outros resultados de saúde”. Para tal, sugerem ser essencial “assegurar que as políticas resultantes e as mensagens associadas são comunicadas de forma coerente aos profissionais de saúde e às comunidades”, uma vez que indicações contraditórias estão, por vezes, na base do insucesso do aleitamento.

Em terceiro lugar, a investigação aponta para a adopção de “um enquadramento abrangente da sobrevivência e saúde infantil para evitar uma simplificação excessiva”, sugerindo que os “modelos animais seriam úteis para elucidar a infecciosidade dos vírus através da amamentação”.

Quarto, no contexto da actual pandemia, “o aconselhamento e apoio ao aleitamento materno” deve centrar-se nas formas “de reduzir o pequeno risco de transmissão” por via respiratória, aconselhando os cuidados de higiene e de protecção que possam surtir efeito.

Por fim, o grupo, que declara a ausência de interesses dúbios, exorta “as autoridades de saúde pública e os legisladores” a ter uma atitude proactiva sobre “a exploração deliberada e a alimentação de dúvidas sobre o aleitamento materno por interesses comerciais”.

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