Gritos de agonia “como um cão” e agressões a Ihor: seguranças contam nova versão em tribunal

Uma testemunha chave do processo, o segurança Paulo Marcelo, foi confrontado pelo juiz com contradições, nomeadamente por não ter dito que viu inspector agredir Ihor. Advogado de arguido mandou extrair certidão por falsidade de testemunho. Este segurança diz que viu “outras situações”. Outro vigilante também afirmou ter visto agressão mas “queria passar despercebido”.

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O inspector Duarte Laja é acusado por seguranças de agredir Ihor Daniel Rocha

Uma versão à PJ e outra ao tribunal: os dois seguranças que passaram a noite com Ihor Homenyuk na noite em que ele viria a morrer, a 12 de Março, disseram esta quarta-feira aos juízes que viram agressões ao cidadão na sala onde o tinham manietado, algo que nunca tinham afirmado à investigação. Paulo Marcelo explicou as diferentes versões por “não querer prejudicar ninguém”. Manuel Correia disse que “queria passar despercebido”.

O primeiro a depor foi Paulo Marcelo. “O que estou a dizer ao senhor juiz é o que é.” Foi desta forma que respondeu ao juiz Rui Coelho quando este lhe ia fazendo advertências sobre as contradições no que dizia esta quarta-feira. Paulo Marcelo, testemunha chave do processo, deu três versões de vários factos — no primeiro interrogatório à PJ a 25 de Março, depois em Julho de 2020 e agora ao tribunal, assinalou o juiz.

Este é um dos seguranças citados no despacho do Ministério Público (MP), que acusa os três inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Luís Silva, Duarte Laja e Bruno Sousa, de homicídio qualificado de Ihor Homenyuk no dia 12 de Março.

Paulo Marcelo acompanhou Ihor durante a noite de 11 para 12 de Março. Foi ele quem disse que um dos três inspectores lhe terá dito de dentro da sala onde morreu o ucraniano: “Isto aqui é para ninguém ver.” Ao tribunal também repetiu a frase, e acrescentou, sobre o inspector Duarte Laja, algo que ainda não tinha referido: “Vi dar-lhe uma [pancada nas costas com o bastão]”. 

Este segurança acabou por descrever ao tribunal que ouviu pancadas, várias, seguidas, e constantes durante o período em que lá estiveram os arguidos. “Ouvi gritos agoniantes, imagine os gritos de um cão.”

Ao tribunal disse que nessa altura, quando espreitou pela porta, Ihor Homenyuk tinha as mãos atrás das costas, algemado, de joelhos no chão, debruçado e um inspector com um pé na sua cabeça — acha que era o inspector Laja. À PJ disse porém que viu Ihor “deitado no chão, de barriga para baixo ou lateralmente”, que não se lembrava se estava algemado e que Duarte Laja estava perto dele mas não sabia precisar se o inspector “tinha o pé em cima da cabeça” de Ihor “ou se apenas ameaçou pontapear”; mas noutra ocasião, como recordou o juiz, disse que Ihor estava sentado num sofá. 

Também o outro segurança, Manuel Correia, ouviu um grito da sala, disse ao tribunal. “O primeiro impacto foi assustador”, disse. “Foi o que me ficou mais na cabeça.” Viu Ihor de barriga para baixo, com as mãos atrás das costas. O inspector Laja “estava chateado” e disse “que não nos queria lá”. “Vi o senhor Ihor mexer-se um bocadinho e o inspector Laja disse: ‘está quieto’. Ele mexeu-se e vejo levantar a cabeça, e o inspector Laja a pôr um pé na cabeça”. Empurrou?, perguntaram-lhe. “Sim”, e com força.

Não foi exactamente isto que disse à PJ, a quem referiu que não tinha visto a agressão. Porquê a diferença?, quis saber o juiz. “Sabíamos o que tinha acontecido e queria passar despercebido nesta situação”, disse. 

Ricardo Serrano Vieira, advogado do arguido Duarte Laja, pediu para extrair certidão das declarações de Paulo Marcelo e instaurar procedimento criminal por falsidade de depoimento.

"Outras situações como esta”

O depoimento de Paulo Marcelo durou toda a manhã e foi o mais longo até agora. Foi confuso e exigiu várias clarificações. O segurança justificou ter contado várias versões por não querer “prejudicar ninguém”. “O meu mal e dos meus colegas foi não ter sido um livro aberto”, disse ao juiz. E acusou o inspector da PJ que conduzia o inquérito de lhe dizer que tinha três arguidos presos e que precisava de provas, chegando a referir que tinha assinado um documento com declarações que não fez.   

Questionado pelo advogado da família Homenyuk, José Gaspar Schwalbach, explicou também que havia “certas coisas” no comportamento dos inspectores do SEF de que não gostava. Disse ainda que já tinha visto “outras situações como esta” — que não especificou nem lhe foi pedido para especificar pelo juiz— e que tinha levado “com spray” usado pelos inspectores. O juiz perguntou-lhe o que é que considerou que os inspectores iam fazer, com base na sua experiência, quando entraram na sala. Respondeu: “Iam acalmar.” Perante a insistência do juiz especificou: “Não sei se vão bater, falar, levar ao hospital ou fazer outra coisa. Vimos muita coisa e nunca sabemos.” 

Havia ou não móveis na sala onde estava Ihor? E que móveis? As respostas foram mudando. Paulo Marcelo disse primeiro que a sala esteve sempre igual com as coisas todas, mas acabou por admitir que os tinha arrastado e protegido com colchões para evitar que Ihor batesse contra eles. Na investigação colegas deste segurança relataram que ele tinha sido agredido no pé por Ihor com um sofá, mas o próprio negou-o. Disse que se tinha magoado, sim, mas não agredido por Ihor. Tanto um segurança como outro admitiram ter manietado Ihor com fitas adesivas; um deles chegou a afirmar que o fizeram em frente aos enfermeiros.

Questionado por Maria Manuel Candal, advogada de Luís Silva, Manuel Correia nega ter dado algum pontapé a Ihor. Confessou que usava botas nesse dia. A autópsia revelou que o cadáver tinha marcas contundentes, “susceptíveis de terem sido efectuadas com um bastão ou um cassetete e a presença da equimose modelada com a forma de uma bota, que denuncia um provável pontapé”.

Sobre a revista que Manuel Correia transportou para dentro da sala, e que a defesa questiona se foi usada para agredir Ihor, este segurança disse que a transportou porque tinha algo sobre Cristiano Ronaldo e seria para entreter Ihor. “Alguma vez utilizou a revista enrolada para bater em Ihor?”, quis saber o juiz. “Não, não.” 

Segundo a autópsia, a morte de Ihor “resultou de asfixia lenta, decorrente da sinergia de dois factores: as agressões de que foi vítima e de ficar algemado, por várias horas, com as mãos atrás das costas”.

No seu despacho o Ministério Público não acusou mais ninguém além dos inspectores. Os três arguidos negam a acusação de homicídio qualificado e referem que nem sequer agrediram Ihor Homenyuk, usaram apenas a força necessária para conter um “passageiro” que estava a ter um “comportamento autodestrutivo”; uma das estratégias de defesa é implicar seguranças e outros inspectores na agressão. A defesa alega que aqueles inspectores estiveram menos de 30 minutos com Ihor, enquanto vários profissionais se cruzaram com ele durante várias horas.

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