Trabalho sexual divide colectivos que preparam greve feminista de 8 de Março

As divisões sobre o enquadramento legal da prostituição marcam o movimento feminista em todo o mundo. Em Portugal, o tema infiltrou-se na rede que organiza a greve e fez estragos. Este ano, pela primeira vez, o protesto do Dia Internacional da Mulher é organizado por dois grandes blocos.

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A Rede 8 de Março – onde permanecem múltiplos colectivos, associações, sindicatos e activistas – já escreveu às centrais sindicais a pedir que convoquem esta greve com quatro pilares: greve laboral, greve aos cuidados, greve ao consumo, greve estudantil Paulo Pimenta

É como se a Rede 8 de Março – plataforma que reúne entidades e activistas que constroem a greve do Dia Internacional da Mulher – tivesse sido atingida por um raio. Partiu-se em duas partes. No centro da discórdia está o trabalho sexual e, em menor medida, a aceitação das mulheres transexuais.

O enquadramento legal da prostituição é fracturante dentro dos movimentos feministas de todo o mundo. Por isso mesmo, o tema tinha ficado fora da Rede 8 de Março. “A rede não é um colectivo, é um conjunto de organizações e de pessoas independentes, como eu”, diz Aline Nunes. “Temos princípios comuns e divergimos nalguns pontos.”

Lá dentro, sempre houve quem não questionasse o modelo português (que não proíbe a venda de sexo nem a sua compra, mas o envolvimento de terceiros). E quem defendesse o modelo nórdico (que criminaliza os clientes). E quem advogasse um modelo próximo do neozelandês (que encara a prostituição como uma profissão).

O que aconteceu? No princípio do ano passado, deu entrada no Parlamento a petição pública “Legalização da Prostituição em Portugal e/ou Despenalização de Lenocínio, desde que este não seja por coacção”. A proposta, apresentada por Ana Loureiro, que gere uma casa de acompanhantes, lembra o modelo que vigorou em Portugal até 1962: só portuguesas, maiores de 21 anos, com licença, em casas autorizadas, fazendo exames periódicos.

O núcleo de Lisboa da Rede 8 de Março quis discutir a petição. E a divergência veio ao de cima. O problema surge logo nos termos a usar.

O termo “trabalho sexual” foi proposto em 1970 para evitar o estigma da palavra prostituição e deslocar a ênfase da discussão moral para a laboral. É um chapéu que engloba quem se dedica à prostituição, às massagens eróticas, ao striptease, ao alterne, às linhas de telefone eróticas, à representação em filmes pornográficos e similares. Há quem a use por mero respeito, mas também quem o encare como uma tomada de posição política. Quem integra o movimento neoabolicionista, como a Assembleia Feminista de Lisboa, que faz parte da rede, prefere a expressão “pessoas prostituídas”.

A Colectiva, uma das impulsionadoras da rede, bateu com a porta. “Não compreendemos o que pode levar a Rede 8 de Março a investir a sua energia na discussão de uma petição sobre regulamentação do trabalho sexual”, escreveu. Viu ali uma “deriva sectária”, que, em seu entender, “ultrapassa todos os limites aceitáveis, quando se decidem organizar debates para discutir trabalho sexual sem trabalhadoras ou trabalhadores do sexo”. 

Em Dezembro, a secção de Lisboa emitiu um comunicado a repudiar o modelo proposto na petição lançada por Ana Loureiro – como, de resto, já fizera o Movimento de Trabalhadores do Sexo (MTS). Teve o cuidado de não usar expressões mais associadas a um lado ou outro, mas acabou por se inclinar para um dos lados da barricada. “Acreditamos que enquanto feministas não podemos jamais aceitar […] que proxenetas façam negócios altamente lucrativos com a nossa auto-determinação sexual”, lê-se.

O colectivo Panteras Rosa, que fora desafiado a regressar à rede, veio logo a público dizer que estava disponível para construir a greve, mas não com aquelas pessoas. Explica Sérgio Vitorino que se recusam a trabalhar com quem integra o movimento neoabolicionista e/ou assume “posições transfóbicas e transmisoginas”. Esta dificuldade de alguns em aceitar que mulheres trans são mulheres também fora apontada pel’ A Colectiva.

“É tema tabu em muitos colectivos”, comenta Maria Andrade, do MTS. “Há resistências. Dizem que vivemos opressões, que somos vítimas de violência. Se vivemos opressões, se somos vítimas de violência, temos de ser respeitadas e incluídas no movimento feminista”, prossegue. “Pode o movimento feminista lutar contra a opressão das mulheres e, ao mesmo tempo, não nos reconhecer como iguais?”

“Não vamos tomar uma posição taxativa sobre este assunto”, assegura Aline Nunes. “A greve feminista em Espanha era muito forte e enfraqueceu por causa disso.” Serviu-lhes de lição. O recém-formado MTS não foi convidado, mas também não foi impedido de se juntar à rede.

A cisão ficou oficializada a semana passada quando A Colectiva – aliada a outras 14 organizações e colectivos “do feminismo interseccional”, como o Centro de Vida Independente, a ILGA Portugal, as Panteras Rosa ou o MTS – lançou um programa alternativo para o 8 de Março e a greve. “Somos muitas e diversas! As nossas singularidades são representadas em cada um dos movimentos que, no seu conjunto, formam uma luta feminista inclusiva e representativa.”

Andreia Quartau, uma das porta-vozes d’ A Colectiva, põe água na fervura: “Não queremos entrar em cisão nem em conflito. Queremos fazer coisas numa unidade plural.” Menciona a crise pandémica e as suas consequências, a disparidade salarial, a sobrecarga de trabalho não remunerado, a violência, a precariedade, a pobreza e os cinco debates online que organizaram a caminho da greve. Esta quarta-feira, pelas 21h, a conversa é sobre a crise dos cuidados. Ainda não decidiram que tipo de ocupação do espaço público farão no próximo dia 8.

A Rede 8 de Março – onde permanecem múltiplos colectivos, associações, sindicatos e activistas – já escreveu às centrais sindicais a pedir que convoquem esta greve assente em quatro pilares (greve laboral, greve aos cuidados, greve ao consumo, greve estudantil). “Achamos muito relevantes, atendendo à covid, a adesão dos sindicatos dos trabalhadores das limpezas, dos call center, dos professores”, exemplifica Aline Nunes. Sem grandes ilusões. “Muitas têm contrato de trabalho temporário ou não têm contrato.” 

Já estão abertas as inscrições para a assembleia geral, que decorrerá online, no dia 8. “Não teremos marchas porque não conseguimos garantir distanciamento social. Em princípio faremos concentrações, porque dessa forma consegue-se garantir segurança. No Porto já foi confirmada a concentração, em Braga também. Em princípio, os núcleos de Vila Real e Algarve vão fazer só online. Coimbra terá uma acção presencial. Em Lisboa estamos a discutir”, remata. Os números da pandemia serão determinantes. 

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