A nova Inquisição

A desregulação ou nova regulação que vem fazendo o seu caminho através do método inquisitório do passado das ideias dos juízes não é só uma ameaça à futura independência dos tribunais. Escolhendo apenas os juízes que lhe garantem fidelidade, ela levar-nos-á seguramente ao fim do próprio Estado de Direito tal como o conhecemos.

Como juiz em exercício há quase quarenta anos, é com um sentimento de indignação que tenho assistido a um cerrar fileiras de alguns sectores da sociedade, nomeadamente dos chamados opinion makers, no ataque pessoal desferido ao actual presidente do Tribunal Constitucional, tendo como alvo específico determinadas afirmações por ele produzidas há cerca de uma década enquanto docente universitário.

Nas suas decisões um juiz tem que a obedecer à lei e só à lei. Contudo, só pode cumprir o juramento que fez quando tomou posse se exercer o seu munus em condições de verdadeira independência do poder legislativo, executivo ou de quaisquer formas de condicionamento. Se, como decorre do art.º 203 da Constituição, os juízes devem obediência à lei – lei cuja aplicação não podem recusar, a pretexto de a considerarem injusta ou imoral –, tal não quer dizer que pura e simplesmente tenham de abdicar do seu pensamento próprio sobre o modo como a sociedade se vai organizando (ou desorganizando). Julgar implica sempre, ainda que de forma inconsciente para quem julga, plasmar o produto de décadas de assimilação dos valores que serviram de alicerce à formação do julgador.

Por melhor executor da lei que se mostre, é natural que, num ou noutro momento, o juiz revele nas suas decisões que também ele é um produto dessa assimilação. Como qualquer outro ser humano, ele não é nem pode ser um bloco de granito imune ao sistema de valores em que foi moldado. Não pode, todavia, olvidar-se que enquanto juiz está submetido, além do mais, aos deveres de independência e imparcialidade que o seu estatuto lhe impõe (art.ºs 4º, n.ºs 1 e 2, e 6.º-C do EMJ), para além de outros deveres que regem a sua conduta para além do “mero” acto de julgar, como acontece com os deveres de reserva e de urbanidade (art.ºs 7-B e 7-D do EMJ).

Qualquer juiz sabe que tem de evitar juízos de natureza ideológica, dentro e fora das suas decisões, tendo somente que preocupar-se em interpretar e aplicar correctamente as leis. Ora, no caso do novo presidente do Tribunal Constitucional, nada disto está em jogo. O que está a ser objecto da efervescência dos sectores da sociedade que tentam impor a humilhação pública do representante máximo do Tribunal Constitucional são afirmações ou juízos de valor que por ele terão sido emitidos quando há alguns anos atrás era “apenas” docente universitário. Afirmações e juízos de valor cujo concreto contexto os incansáveis Torquemadas que prepararam o auto de do visado, no afã de divulgarem tamanha vileza, propositadamente escamoteiam, apesar de bem saberem que, nesta como noutras citações, o contexto (o tempo e o modo) faz toda a diferença.

Mas não foi – obviamente – a defesa das ideias outrora proclamadas ou confessadas pelo ilustre jurista – se é que foram autênticas convicções – o que agora me motivou. Não me interessam os juízos de valor que nessa altura foram emitidos. Esses juízos eram consentidos a qualquer cidadão. E, aliás, nada assegura que as opiniões por ele expressas há dez anos se mantenham no presente. O que verdadeiramente me sobressaltou foi a percepção de que há sectores da sociedade que anseiam por constranger a todo o custo o poder judicial a aderir aos valores pelos quais só eles pugnam, por forma a que as decisões tomadas pelos tribunais venham a corresponder ao seu catecismo ideológico/axiológico. Acredito, apesar de tudo, que, agora no desempenho do seu mandato como noutra circunstância, o presidente do Tribunal Constitucional obedecerá apenas à lei; e que, como todos os juízes em funções, não se deixará manietar ou influenciar por quaisquer pressões ou condicionamentos – por mais subliminares que sejam –, preservando briosamente a sua liberdade de actuação e decisão.

O problema residirá principalmente na mensagem que é transmitida a quem projecta vir a ser juiz. É que a desregulação ou nova regulação que vem fazendo o seu caminho através do método inquisitório do passado das ideias dos juízes não é só uma ameaça à futura independência dos tribunais. Escolhendo apenas os juízes que lhe garantem fidelidade, ela levar-nos-á seguramente ao fim do próprio Estado de Direito tal como o conhecemos. É esta uma nova e – por ora – inorgânica Inquisição em que os novos Torquemadas, vasculhando a vida de cada um, criminalizam o mero pensamento dos denunciados, assim se realizando a advertência a todos os hereges. Passa a estar condicionada a escolha de quem porventura planeia vir a ser juiz ou de vir a desempenhar como juiz uma função preponderante num tribunal. Está aberta a porta a uma certa punição de tipo ideológico de quem se desvia de uma certa corrente; à ostracização de quem publicita um pensamento não conforme a certos padrões (mas não aos valores ou princípios constitucionais).

Dissecando todo o percurso de vida dos juízes, mas, em especial, as ideias e tendências por eles aí expostas e que eventualmente desaprovam, e atirando seguidamente os seus autores para a fogueira da caricatura social, os novos inquisidores conseguem desencorajar muitos dos que seriam futuros juízes. Desse modo comprometem a real independência e liberdade daqueles a quem vai ser cometida a função de julgar e minam a confiança nos tribunais dos cidadãos. Sendo também certo que para este objectivo concorre o silêncio ensurdecedor de muitos que, em lugar de erguer o seu protesto perante autos de como este, permanecem calados, apostando antes em colocar-se do lado que se lhes afigura triunfador.

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