A mossa

A primeira vez que percebi que o coração era um compartimento grande e anguloso onde cabiam sentimentos muito diversos, deve ter sido já aos 16 anos. Talvez 17?

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"Com sorte, muitos amores e passeios se repetirão nas nossas vidas" Mag Rodrigues

Leva tempo a percebermos que de facto temos coração, ou melhor, que os outros chamam coração ao sítio de onde partem as dores maiores. A minha megalomania está toda alojada no mesmo órgão e até lhe podiam chamar outra coisa. Aceito a romantização. Até porque em breve vamos esquecê-la.

Sempre tive muita dificuldade em dizer que era feliz. Alguém inventou um conceito onde poucos encaixam e muitos mentem. A minha felicidade dura o tempo de uma canção, de um brinde, de um prato quente feito com amor. Lá está, se não vier do coração mesmo que se dirija ao estômago, pouco me diz.

A primeira vez que percebi que o coração era um compartimento grande e anguloso onde cabiam sentimentos muito diversos, deve ter sido já aos 16 anos. Talvez 17?

Foi um Verão onde se fizeram discos muito bonitos, ou então sou eu que os quero ver assim. Maldita jukebox selectiva que guarda tudo o que a dor manda. Nesse Verão ensaiei uma felicidade até aí desconhecida. Foi o meu primeiro grande amor.

Às vezes tenho saudades de uma certa inconsciência que nos protege do perigo e que nos poupa as lágrimas. Devia ter quatro anos quando pela primeira vez uma mulher, Natália, nos bateu à porta porque o marido a perseguia com uma faca. Lembro-me do sobressalto, do susto e depois, só depois, de perceber que tudo junto me tinha levado a sentir medo. O medo era também ter alguém que temia pela sua própria vida e nos batia à porta a pedir ajuda. O medo da minha morte, penso que veio pouco tempo depois. Sem lágrimas. Só a soma estranha de efeitos adversos em mim que me faziam sentir o incómodo de não saber se queria viver. Tinha quatro anos. Ia a tempo de sentir medo.

Verão de 1987. Ainda andávamos a ouvir o Steve McQueen dos Prefab Sprout. As canções demoram a chegar até nós: chegam quando nos fazem sentido. Não tenho pressa. Tenho menos ainda agora.

Eu nunca tinha sonhado com aquele rapaz. Nunca tinha sonhado com um amor. Não sabia que se podia tentar fazer caber no nosso imaginário uma pessoa. Ele não cabia. Tinha barba e perfume de homem. Começou a ir esperar-me de bicicleta num exercício de veraneio que me persegue: sei o sítio onde um dia me apanhou de surpresa. Não sei o que me disse. Intuí que fosse uma declaração. Ele de passeio na bicicleta, eu a passear a adolescência. Provavelmente os dois a medo.

Sei agora, tantos anos depois, que não há idade que nos salve das mossas, dos toques, do amolgado sem intenção. Batemos porque estávamos presentes, próximos, às vezes distraídos. Às vezes até demasiado conscientes. Olhem que a racionalidade também pode ajudar à mossa.

Verão de 1987. Havia outros discos e outras canções. A bicicleta deu lugar a passeios mais sérios, aos primeiros telefonemas para um telefone fixo que me sobressaltava o coração. Durou mais que um Verão. Atravessou o Inverno. Chegou ao meu Inferno interior que eu nem sabia que existia.

Olho para essa ingenuidade que está lá atrás e que acabou em lágrimas, aquelas lágrimas que tememos que nunca mais terminem e que dali nada nasça de novo. É só um prolongamento da angústia que nem sequer tem fim. Ali entre o nó da garganta e o estúpido despertar a que pedimos tréguas na imediata lembrança do amor mal abrimos os olhos.

Com sorte, muitos amores e passeios se repetirão nas nossas vidas. E como se repetiram: mais, melhores e fundos! Muitas vezes, depois disso, vamos perceber que temos o mesmo nó na garganta, que as canções podem ser insuportáveis na forma como nos lembram os amores, que o despertar é a maior prova de como superámos (ou não) um amor vivido: se te lembras dele ao acordar é porque ainda vive demasiado rente a ti.

Tudo se vai repetir nas nossas vidas. Haja coração. O que nunca vou querer dizer à minha filha de forma leviana é aquilo que ouvi os adultos repetirem em tom condescendente: “Isso passa!”

Às vezes demorará uma vida a passar. Não raras vezes, muitos amores terão o molde do primeiro.

A primeira mossa que nunca se apaga.

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