A homofobia não é constitucional

As frases de 2011, que eram discriminatórias e ofensivas enquanto proferidas por um professor de direito, assumem outra dimensão quando são perpetuadas pelo presidente do Tribunal Constitucional. Se não se retratar, Caupers afirma a manutenção de uma visão homofóbica da sociedade.

Há um século, Kafka resignava-se: “Na luta que opõe o indivíduo ao mundo, apostem sempre no mundo.” A vida mostrou como esse desalento foi desmentido pelas lutas que fizeram caminho, que conseguiram o que antes era impossível. Nem sempre o mundo venceu e muitas vezes foi vencido por homens e mulheres que não desistiram. Por mundo entendam-se ideias, preconceitos, regimes, os vários poderes estabelecidos que, parecendo eternos, foram caindo com a marcha da história.

Na luta contra as discriminações, o novo milénio trouxe novos direitos e, acima de tudo, uma maior plenitude da palavra igualdade. A palavra já estava na Constituição como um direito fundamental, mas todos sabemos que a lei impedia que fosse plena. Mudamos a lei, acabamos com o fim da discriminação no casamento e na adoção, colocamos identidade e igualdade a caminhar juntas: avançamos muito em matéria de direitos. Acho que hoje podemos dizer que fizemos o mundo mudar, graças a muitas lutas solitárias, individuais, minoritárias, que foram ganhando até vencerem as leis que oprimiam.

Esta semana conhecemos como há mundos ainda por mudar. Ideias e cabeças que continuam agarradas ao passado do qual já viramos a página. Antes da resignação equívoca de Kafka, Tolstoi tinha escrito muito sobre a mente humana: “Os temas mais complexos podem ser explicados ao menos inteligente dos homens, caso ele ainda não tenha uma ideia formada sobre eles; mas o assunto mais banal não pode ser esclarecido ao mais inteligente dos homens caso ele esteja convencido de que já conhece sem sombra de dúvida o que tem diante de si.” Acho que é esse o ponto de partida para analisar as palavras de João Caupers, o recém empossado presidente do Tribunal Constitucional.

Em 2011, quando o país festejava o fim da discriminação no casamento, Caupers construía um muro para conter estes avanços civilizacionais. Quase parecendo querer vingança perante esta vitória da igualdade, escreveu que “uma coisa é a tolerância para com as minorias e outra, bem diferente, a promoção das respetivas ideias: os homossexuais não são nenhuma vanguarda iluminada, nenhuma elite. E nas sociedades democráticas são as minorias que são toleradas pela maioria – não o contrário. (...) A verdade – que o chamado lobby gay gosta de ignorar – é que os homossexuais não passam de uma inexpressiva minoria, cuja voz é enorme e despropositadamente ampliada pelos media”.

Enquanto perorava contra o “lobby gay, João Caupers não percebia como a sua análise era absurda. O que estava em causa não era saber se a heterossexualidade era maioritária ou se o era a homossexualidade, o que tinha mudado no país é que a homofobia tinha deixado de ser maioritária. Era essa a vitória que se celebrava e contra a qual ele estava. No fundo, esbracejava para esconder a derrota do seu mundo homofóbico num país que avançava nos direitos.

Passou uma década, muita coisa mudou. O que foi objeto de amplas discussões, o que era considerado uma causa fraturante faz agora parte da nossa identidade, um dos direitos que ninguém tem coragem de questionar por parecer tão natural, tão óbvio, tão fundamental. E, passados estes anos, desconstruídos os mitos e derrubados os muros, seria de esperar que João Caupers tivesse evoluído. Mas, parece que não.

Quando perguntado sobre o que escreveu, a resposta de João Caupers não augura nada de bom: “Na maioria dos casos, voltaria a escrever o que escrevi.” A homofobia não deixa de o ser por se passear no Palácio Ratton. As frases de 2011, que eram discriminatórias e ofensivas para milhões de homens e mulheres enquanto proferidas por um professor de direito, assumem outra dimensão quando são perpetuadas pelo presidente do Tribunal Constitucional. Se não se retratar, Caupers afirma a manutenção de uma visão homofóbica da sociedade.

Haverá quem diga que, sendo juiz do Tribunal Constitucional, a sua independência deve ser respeitada. Com isso tentarão calar a legítima contestação. Mas não há juízes acima da crítica, seja ela política ou cidadã, em particular quando colocam em causa um dos princípios fundamentais que devem defender: a Igualdade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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