Ensino de Emergência 2.0 e o Antivírus do Bom Senso

Nesta fase, é importante ouvir os alunos, as famílias e os professores sobre a carga de trabalho e os ritmos de aprendizagem, que fazem do digital uma das suas vantagens, ao contrário das versões anteriores, demasiado “tayloristas”.

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Paulo Pimenta

O dia 8 de fevereiro de 2021 marca o regresso às aulas, pela terceira vez este ano letivo, mas, desta forma, num formato de retoma ao Ensino Remoto de Emergência. Porém, e sendo um reinício de aulas remotas na sua versão 2.0, não tivemos tempo de desfazer os equívocos transferidos de março para cá? Não tivemos tempo e oportunidade de ter feito algum upgrade?

A verdade é que nesta fase temos a sensação de que a versão “Ensino Remoto de Emergência 2.0” tem ainda bastantes “bugs”, eventualmente, por também a “firewall da Serenidade” e o “antivírus do Bom Senso” estarem desativados ou sequer instalados nos “servidores” de algumas escolas.

Alguns dos “erros de sistema” identificados relacionam-se, desde logo, por continuar a evocar “este ensino”, como sendo Ensino à Distância. Provavelmente, por não conhecermos o “software original” do Ensino Online, acabamos por resumir o seu significado a uma tipologia de Escola que está longe, que não nos ouve, que não tem conexão digital, que não tem impacto na aprendizagem e que se aproxima de uma versão televisiva, neste caso, com a impossibilidade de alterar o canal. Esta circunstância poderia ser alterada se esta distância fosse encurtada, chamando todos à participação na melhoria do processo. Por exemplo, encurtando a distância, focando a relação entre professor e aluno num espaço virtual, que fosse, simultaneamente, uma ligação digital e uma ligação emocional, identificada pela qualidade e não pela quantidade dos conteúdos.

Porém, os equívocos são tantos que receio não termos tempo útil, até voltarmos ao presencial, para os desfazer, continuando o sistema operativo desta versão 2 em completa desatualização...

Como em qualquer sistema que adquirimos, é fundamental ler as instruções de funcionamento antes da sua utilização, como são os “Contributos para a Implementação do Ensino a Distância nas Escolas”, divulgado a 2 de fevereiro, pela Direção Geral de Educação. Claro está, que é importante não comprarmos o sistema operativo e só a posteriori lermos as instruções disponíveis para regular essa utilização. É conveniente, para uma melhor eficácia, existir um tempo proveitoso para a aprendizagem da sua utilização, ainda assim, e por considerarmos que temos a oportunidade de melhoria contínua, nunca é tarde para adaptarmos e melhorarmos a Educação.

Como tal, compreender, hoje, as diferenças entre trabalho síncrono e assíncrono é fulcral para que não se esteja, diariamente, em esforços inglórios para concretizar aprendizagens através de cronogramas e horários desfasados do real tempo de foco da atenção sustentada dos alunos. Compreender que o trabalho síncrono tem que ver com simultaneidade entre professor e alunos, e que esta se consegue através de diversas formas, que não só e apenas a videoconferência, seria uma readaptação urgente e necessária. Outro ponto está relacionado com a melhoria da ligação digital e emocional entre alunos, famílias e professores para esta versão 2.0. A acrescentar, também, um melhor entendimento do que são tarefas assíncronas, e quão importante é o foco online nas mesmas, para que não sejam um qualquer trabalho de casa para o aluno fazer sozinho, enquanto descansamos de um dia de trabalho, mas sobretudo, porque este tipo de tarefas favorece a inclusão de mais alunos num processo de aprendizagem, pela forma como podemos gerir o ritmo, o tempo e a forma de execução, em famílias que ainda estão a reencontrar-se, mesmo vivendo na mesma casa. Na realidade, preparar um guião para uma tarefa assíncrona e o respetivo feedback, torna-se ainda mais exigente e trabalhoso.

Outros equívocos que não deixam esta versão 2.0 atingir algum potencial, é a contínua ideia de que devemos continuar a cumprir currículo ao mesmo tempo que percebemos que os alunos não o adquirem na mesma velocidade, muitos alunos ainda não estabeleceram a ligação digital e/ou emocional para uma predisposição para a aprendizagem. Além disso, quando pelo segundo ano letivo consecutivo nos encontramos num cenário atípico, não podemos pretender que o currículo siga a mesma ordem e rotina de um qualquer outro ano letivo.

Pretendemos que os reinícios, e este em concreto, sejam feitos com a serenidade e a calma necessárias para que não ingressemos em processos de aprendizagem exaustivos, numa interação desenfreada de utilização de apps e plataformas. O ideal é criarmos um ambiente tranquilo e sem precipitações, de forma simples e envolvendo os alunos em tarefas curtas e dinâmicas que promovam a participação, a conversa, o debate, a opinião, naturalmente, com estipulação de regras. Tudo isto deve decorrer em formatos participativos e sem imposições, considerando cada um, para uma melhor equidade e condição na participação ativa.

Neste momento, é indiferente cumprir “esse” currículo se o aluno não estiver física e emocionalmente disposto para interagir e para o aprender. O tempo que pensamos que possa estar a ser desperdiçado, será devolvido em autonomia e maturidade, sempre numa perspetiva de desenho de atividades claras e objetivas, com mais qualidade do que quantidade nas interações. Assim, recomendaria ativar o “antivírus do Bom Senso” e deixar de replicar horários em 100, 70 ou 50% de horários síncronos em videoconferências, uma vez que a quantidade não significará, de todo, a qualidade emocional e cognitiva dessas ligações. Não existem receitas, mas sim o conhecimento de tempo de atenção sustentada para a aprendizagem em diferentes alunos, tempo que reconheça a gestão do ambiente familiar, reconhecimento da tipologia de recursos disponíveis e o diagnóstico de competências de aprendizagem, ou seja, a norma deveria ser a flexibilidade de horários, podendo dar respostas diversas, em diferentes contextos.

Ao fim de alguns dias é possível perceber o exagero da carga horária para crianças tão novas, que desde os cinco anos de idade permanecem três a cinco horas em momento de videoconferência. Nesta fase, é importante ouvir os alunos, as famílias e os professores sobre a carga de trabalho e os ritmos de aprendizagem, que fazem do digital uma das suas vantagens, ao contrário das versões anteriores, demasiado “tayloristas”.

Significa que, neste ano de 2021, o repensar da escola já deveria estar num nível que não o da uniformização, onde todos são tidos por igual. Conhecemos milhares de professores que foram aprendendo ao longo dos anos (previamente à pandemia) e durante a pandemia como proceder para além do uso técnico da tecnologia e das plataformas, potenciando as aprendizagens dos alunos através de modelos pedagógicos ativos mediados por tecnologia nos ambientes virtuais.

Atualmente, já existem professores capazes de demonstrar as suas capacidades críticas e pedagógicas no reconhecimento das formas de trabalhar o currículo de forma flexível, em cenários de aprendizagem invertidos, gamificados, por projeto, diversificando e combinando as formas de avaliação. Com essa experiência e conhecimento, podem, criticamente, partilhar, apoiar, pensar a Educação e ajudar a operacionalizar esta versão 2.0 do Ensino Remoto com “Serenidade” e “Bom Senso”. Infelizmente, quando a Educação parecia estar a seguir caminhos diferenciadores e promotores de equidade, sistemas mais democráticos, parece estar a voltar ao caminho da uniformização, onde todos os contextos (familiares e de aprendizagem) são vistos como iguais, independentemente, da região, da idade, do grau de ensino, entre outros.

São estes professores que precisam ser ouvidos pela forma crítica como pensam e pelas experiências contrárias a essa uniformização pelo digital, pelo uso de plataformas e gestão das mesmas, contrariando uma instalação de “software” massificada. São estas experiências diferenciadoras que promovem a equidade entre os alunos, que promovem a diferença nos contextos, que promovem a flexibilidade dos seus horários (mesmo após as horas síncronas obrigatórias), que promovem a diferença das suas ações pela combinação de modelos interativos.

É possível ainda redefinir e readaptar as práticas, porque este é um sistema educativo que se pretende presencial, mas é o digital que nos oferece a diferenciação pedagógica e o potencial de aprendizagem ubíqua. Saiba esta Escola atual usar a autonomia tantas vezes requisitada ao Ministério da Educação e tenha, hoje e nesta conjuntura, a coragem e o pensamento crítico para a saber implementar e adaptar ao seu contexto e à sua realidade, em benefício da sua comunidade educativa.

Que se ative definitivamente o “antivírus do Bom Senso” e reinstale o sistema operativo para a versão Ensino Remoto de Emergência numa verdadeira Escola Democrática, e que se lute por ela, ao invés de a simular como tal.

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