Até que o ghosting nos separe: especialistas explicam aquilo que o amor não consegue

O que levaria alguém a sair de uma relação, independentemente do grau de envolvimento, sem a terminar? Duas especialistas explicam ao PÚBLICO este fenómeno, que leva tudo consigo e só deixa dúvidas a quem fica.

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Temos tendência para romantizar os começos, tão envoltos no brilho da novidade e na excitação do desconhecido, mas fugimos dos finais — especialmente quando eles não são felizes — e há quem leve tudo consigo, deixando apenas incertezas a quem fica. No dia em que se celebra o amor, o PÚBLICO procurou compreender o que leva uma pessoa a desaparecer da vida de outra, sem qualquer justificação ou aviso. Joana Almeida, psicóloga clínica e membro da direcção da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (SPSC), e Paula Guerra, socióloga especializada em problemas sociais, mudança social e culturas juvenis, explicam esta ruptura tão abrupta entre duas pessoas, e as consequências que traz, tanto para a sociedade como para quem é ghosted.

A Joana Almeida chegam preocupações não tanto de adolescentes, mas sim de jovens adultos e adultos em relações pontuais. Por isso, argumenta que relacionar este comportamento com as gerações mais novas pode ser uma falsa suposição. O afastamento é mais fácil “quando conhecemos o corpo, mas não a história de vida da outra pessoa”, no entanto, a psicóloga já o viu acontecer também “a pessoas que se estavam a apaixonar e até já tinham apresentado os amigos e família”.

Paula Guerra admite que se trata de uma questão central e transversal a todas as gerações, que “cada vez mais começa a ser evidenciada mais cedo pelas pessoas, mesmo num contexto de interacção infantil e adolescente”. Há já uma espécie de socialização para o ghosting: as pessoas mandam e-mails e mensagens e não obtêm resposta, e isso é tido como normal. Foi naturalizado e banalizado na nossa sociedade”, acrescenta.

Explicá-lo “pode ser difícil”, uma vez que cada caso é um caso e não conhece estudos que relacionem o comportamento com características de personalidade ou motivações, admite Joana Almeida. É sabido, sim, que “as conversas de fechar uma relação são duras para os dois lados, para quem o ouve e para quem o diz”. A psicóloga clínica infere que esta abordagem ao problema é resultado de uma desinibição proporcionada pela Internet, nomeadamente nas aplicações de encontros. “Quando ouço falar do ghosting está mais associado ao desaparecer de aplicações de encontros, desta microcomunidade”, revela.

Já Paula Guerra explica que qualquer tipo de relacionamento se divide em quatro fases: iniciação, desenvolvimento, manutenção e dissolução. “O que esta prática do ghosting vem acentuar é, no fundo, quebrar com a ideia de dissolução”, propõe, partindo do princípio que essa implica uma resolução entre as duas pessoas. Assim, a relação “acaba por terminar unilateralmente, pelo facto de a pessoa desaparecer”. No entanto, “não há uma explicação única” para esta atitude, embora o crescimento tecnológico e as redes sociais, com a falta de contacto visual cara a cara, sejam certamente “potenciadores deste tipo de práticas”.

“Uma questão de ética"

Em causa está a falta de consciência do impacto desta atitude no outro, por existir um modelo de crenças não partilhado. Para a psicóloga trata-se de “uma questão de ética”, de como nos relacionamos e o que esperamos das relações. “Se pensarmos do ponto de vista de quem o faz, se calhar é prático fazê-lo e não pensar nas consequências, não pensar se estamos a magoar alguém, se a outra pessoa tinha expectativas de uma relação mais duradoura e aprofundada”, supõe. “A Internet ainda não tem um protocolo de boa educação e normas sociais de respeito ao outro”, e isso proporciona atitudes evasivas “como não responder a um e-mail”, compara.

A especialista não acredita, contudo, que seja por culpa da Internet que há desinteresse por relações afectivas. Mas, “termos um comportamento ético, de respeito pelo outro, não tem que ver com afectos”, defende. No ghosting, é provável que a pessoa ache que “como não tem afectos pela pessoa não tem de a respeitar, nem tem de se preocupar se ela vai ficar desiludida, confusa ou magoada”. Joana Almeida exemplifica: “No fundo, era só sexo. Mas o que é que é isto de ‘só sexo’? Porque isto tem muitos significados diferentes e se calhar não é só sexo”. 

O capitalismo dos afectos

A indiferença e a desresponsabilização dominam nas relações, e são sinais do quão capitalista a sociedade moderna se tornou. A psicóloga debate ainda o motivo pelo qual um indivíduo se junta a este tipo de apps, enumerando algumas possibilidades. “É para consumir? E depois de experimentar com determinada pessoa posso ir experimentar com outra porque já usei o que tinha a usar?”, questiona. “É um bocadinho a nossa lógica social capitalista de consumo dos afectos”, conclui Joana Almeida.

Paula Guerra partilha da mesma opinião, e acrescenta que o comportamento deriva também da fragmentação que a sociedade enfrenta em vários níveis. ghosting, a par com o ostracismo e a indiferença, são práticas culturais cada vez mais recorrentes, um “modus operandi que deriva muito destes tempos em que vivemos”.

Com este contexto de capitalismo tardio em que nós vivemos, é cada vez mais possível uma espécie de escolha quase desvinculada de uma relação, e se ela não está bem então vamo-nos desligar daquela pessoa, porque não queremos sofrer. Há aqui todo um contexto de desvinculação, de fuga à responsabilidade, aos sentimentos e ao outro, muito relevante”, explica Paula Guerra.

Comunicação e honestidade são fundamentais

Para a socióloga, a solução para combater esta falta de humanismo e empatia na sociedade passa por uma educação holística da pessoa, desde cedo, para a vivência neste mundo. “Queremos estar afastados, só nos preocupamos quando é connosco e nunca calçamos os sapatos dos outros”, critica. Além disso, “há uma quebra fracturante de comunicação”, que tem de ser reconhecida e reparada. 

Para Joana Almeida vivemos numa altura em que as relações monogâmicas e com opções de exclusividade como “casado ou solteiro” perderam espaço e o espectro é agora mais alargado. Não obstante, deve haver ética, estando ambas as partes conscientes daquilo que são e sintonizadas naquilo que querem. As pessoas devem saber “com que linhas se estão a coser”.​

​Mas, quando é que se sabe que uma relação tem determinado nome? “Às vezes é complicadíssimo, as pessoas podem estar juntas a ter intimidade e a apoiarem-se no melhor e no pior, e quando chega à altura de negociarem os termos da relação podem recusar serem namorados”, responde. A especialista acredita que a pluralidade de estruturas relacionais é boa para a sociedade, mas tem de haver sempre respeito quanto às expectativas do outro, que podem ser diferentes das nossas. Como tal, “é aí que é preciso ainda, e sempre, como há 20, 50 e 100 anos, a comunicação do casal, para encontrarem o respeito e o consentimento”, independentemente do foro do relacionamento.

A comunicação pressupõe honestidade, embora a volatilidade dos relacionamentos possa trocar as voltas às intenções das pessoas com o tempo. “Quantos casamentos duradouros não começaram com duas pessoas a dizerem que não estavam à procura de uma relação longa e que era só amizade? Estavam a ser pouco honestos? Não, mas naquele momento aquela era a honestidade e depois as coisas foram evoluindo e mudando.” Além disso, admite que é difícil comunicar sobre sexualidade com transparência, e que não é uma questão como todas as outras. “Mesmo numa sociedade como a nossa, altamente sexualizada e estimulante sexualmente, continuamos com dificuldade em abrir o coração, sermos genuínos naquilo que dizemos, falarmos das coisas difíceis em vez de as evitarmos”, termina.

Em vez de reflectir sobre por que razão as pessoas fazem ghosting, prefere antes questionar que consequências é que tem para a vítima. Sem querer generalizar, aponta uma óbvia, que é a insegurança que se instala e deixa traumas, afectando “a saúde mental, o bem-estar, e a capacidade da pessoa de formar novas relações com confiança e com aquela fé de que vale a pena arriscar”. Especialmente, quando se vive uma pandemia que fragiliza ainda mais as pessoas, ressalva.

Também a socióloga consegue ver como a pandemia proporcionou este tipo de comportamento, sendo o confinamento “uma justificação muito boa” para quem não quer “enfrentar o sofrimento do outro ou ficar com remorsos”. Assim, é possível libertar-se do peso de ter de lidar com coisas que “nos obrigam a parar e a reequacionar”. “A relação que nós temos com quase tudo no momento é provisória e sem compromisso”, reconhece.

Do ponto de vista societal, há outras questões que podem derivar deste comportamento, nomeadamente a descartabilidade e banalização das relações, alerta Paula Guerra, também elas cada vez mais “pautadas pela efemeridade e transitoriedade”. De tal modo que até o ghosting se está a naturalizar: “Em 2015, o ghosting foi o termo eleito do ano pelo dicionário britânico Collins. Portanto, isto é muito assustador pois, em pouco tempo as coisas parece que começam a tornar-se conceitos e práticas recorrentes.”

Eu diria que em última instância, com estas práticas tipo ghosting, há um recolher para dentro e uma atomização das relações societais”, atira, ressalvando que tal já tinha sido questionado por Georg Simmel em A metrópole e a vida mental. No início do século XX, o sociólogo escrevia que o homem metropolitano, sendo objecto de múltiplos estímulos banalizados, acaba por se retrair e não lhes dar relevância. “Imagine-se, ele já escreveu isso há cento e tal anos”, conclui.

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