Encher carrinhos de compras online é uma doença acentuada pela pandemia

Um estado emocional alterado pode levar a que a pessoa faça compras compulsivamente. Este é um problema de saúde que se agudiza com o estar confinado em casa e passar demasiado tempo em frente a ecrãs.

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Dylan Gillis/Unsplash

Antes de se deitar, Patrícia pega no smartphone e abre aplicações de lojas online, umas atrás das outras. Gosta de roupa e, na impossibilidade de ir às compras, a gestora de 42 anos confessa que vai “enchendo o carrinho” com blazers e blusas que usaria se estivesse a ir diariamente ao escritório; ou com peças confortáveis para usar no ginásio. Por vezes, vê roupa e sapatos para os filhos, mas raramente conclui as compras, ou seja, a maior parte das vezes desliga o telefone e adormece. Mas nem toda a gente é assim, alerta Ivone Patrão, psicóloga e especialista em dependências. Com o confinamento, são muitos os que procuram as compras online como forma de escape e tornam-se dependentes.

Em Novembro, o Instituto Nacional de Estatística (INE) avançava que em Portugal aumentara significativamente o número de utilizadores do e-commerce, com o registo mais alto em 18 anos. Ainda assim, abaixo da média da União Europeia. O ano passado, 44,5% dos inquiridos entre os 16 e os 74 anos garantiu ter realizado encomendas pela Internet nos 12 meses anteriores ao inquérito. Um crescimento directamente relacionado com o impacto da pandemia, as restrições de circulação e com o facto de milhares de portugueses estarem a trabalhar a partir de casa. Isso fez “acelerar a utilização mais intensiva da Internet”, apontou o INE.

“Cansaço, tristeza, ansiedade acumulada e a necessidade de gratificação imediata”, enumera Ivone Patrão. “As pessoas estão cansadas, são forçadas a estar muitas horas online [em teletrabalho ou a dar apoio aos filhos nas aulas à distância] e entre uma videochamada ou uma resposta a e-mails vão às compras [online] por prazer. É um escape”, descreve a especialista.

Mariana, 24 anos, a trabalhar na área do marketing, confessa que sente saudades de ir às compras ou “simplesmente de ver montras”. Era o que fazia à hora de almoço quando estava no escritório, no centro de Lisboa. Agora, em casa, aproveita os momentos mortos entre reuniões por Zoom para espreitar os sites de que gosta, à procura de saldos ou de promoções e vai enchendo o carrinho. Tenta ser “contida”, afirma, mas nem sempre consegue, até porque há peças que são “imperdíveis”. 

A investigação diz que são sobretudo as mulheres que têm um problema de dependência, chamada shopping addiction, continua Ivone Patrão. “Temos pessoas com baixa auto-estima, mais compulsivas, com um estado emocional alterado que gera o impulso pelas compras.” Agora, a pandemia pode espoletar este vício. Ou seja, o facto de estarmos em confinamento, de as lojas estarem fechadas, não ser possível ir aos centros comerciais, tudo isso leva a que as pessoas procurem a satisfação dessa necessidade noutros espaços: o virtual.

Cuidado com os filhos

Quando é que estas compras se podem tornar um problema de dependência? Quando a pessoa perde o controlo, compra de mais ou compra coisas de que não precisa. Ivone Patrão alerta para a questão dos algoritmos. Por exemplo, quando se entra numa loja online de electrodomésticos e a partir daí toda a publicidade que nos surge no computador é sobre torradeiras, máquinas de café ou ferros de engomar — o mesmo acontece se pesquisarmos uma noite num hotel, uma viagem, um automóvel ou um gadget. “Há uma sobrecarga cognitiva, recebemos pop-ups, anúncios e isso pode influenciar-nos ou motivar-nos para fazer compras”, explica.

Nesta quinta-feira, no programa Tubo de Ensaio, na TSF, Bruno Nogueira brincava com a situação e comentava que, à distância de um clique, estão umas “pantufas feitas de pele de gato” e a “pessoa olha e pensa: ‘está bem visto...’” e compra, até porque chega a casa dentro de uma caixa, logo, ninguém vê, efabula. O facto de a pessoa fazer as compras sozinha, em casa, pode levá-la a consumir produtos que antes da pandemia jamais compraria por “vergonha social”, diz Ivone Patrão. “Estamos mais expostos”, constata 

Bruno Nogueira aconselha: “Diga não ao clique.” Mas pode não ser fácil devido aos factores internos e externos. A psicóloga recomenda o controlo dessa compulsão, até porque não estamos a viver apenas uma crise pandémica, mas também económica. Ivone Patrão chama ainda a atenção para os filhos: também estes, com um acesso diário às tecnologias, podem ter um problema de dependência e muitos sabem como usar o cartão de crédito dos pais.

Esta é uma “dependência silenciosa” e as pessoas não pedem ajuda, continua a investigadora do ISPA - Instituto Universitário, em Lisboa. “Não é o principal motivo para que uma pessoa peça ajuda. Normalmente, existem outros problemas de foro emocional, outros problemas de adição, e este é considerado secundário”, refere. Mas, com o “agravamento do estado emocional, claramente vão surgir pedidos de ajuda”. Contudo, esta não é rápida nem imediata, é necessário fazer psicoterapia, o que demora. “A pessoa tem de querer ser ajudada”, conclui. 

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