Como proteger a privacidade das conversas na Net e não deixar os predadores sexuais à-vontade?

Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia empenhada em acordo sobre legislação provisória que permita equilíbrio difícil entre direito à privacidade e protecção de crianças.

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PAULO PIMENTA

Não há volta atrás. Sempre que mandar uma fotografia ou um vídeo a familiares ou amigos, através de uma plataforma digital ou uma aplicação informática, o sistema vai verificar se está a remeter material de abuso sexual de crianças. Quando trocar mensagens escritas, vai procurar sinais de aliciamento sexual de menores de idade (grooming). A questão é com que salvaguardas. 

A reuniões de peritos do Parlamento Europeu e da Presidência Portuguesa sucedem-se em busca de um acordo sobre o que cada um julga ser a melhor forma de salvar o direito à privacidade das comunicações electrónicas entre particulares sem comprometer a necessidade de prevenir e combater o abuso sexual de crianças online. Os políticos devem voltar à mesa de negociações na próxima semana. A Presidência espera fechar um acordo ainda este mês.

Ninguém lhes pediu, mas há uns anos as empresas que fornecem serviços de comunicações pessoais pela Net começaram a usar tecnologia para identificar imagens e vídeos de abuso sexual e analisar textos e tráfego de dados em busca de comportamentos que configuram a prática de grooming. Fazem isto, de forma voluntária ao abrigo do regulamento de protecção de dados, mas entrando no domínio da privacidade. E remetem a informação às autoridades. 

Com a entrada em vigor do Código Europeu de Comunicações Electrónicas, no dia 21 de Dezembro, os serviços de comunicação interpessoal baseados na Internet passaram a estar abrangidos pela Directiva Privacidade Electrónica, que está a ser revista. Quer isto dizer que as empresas ficaram obrigadas a respeitar a privacidade das comunicações interpessoais feitas através destas plataformas ou aplicações.

A directiva não tem qualquer referência explícita a material de abuso sexual de crianças online. Umas empresas, como a Microsoft, dona do Skype, a Google ou a LinkedIn, continuam a usar as referidas ferramentas tecnológicas na UE. Outras, como a Facebook, dona do Messenger e do Instagram, descativaram-nas.

“Não podemos deixar as coisas como estão”, reage Tito Morais, da Miúdos Seguros na Net, uma das organizações que apelaram à presidência para dar prioridade a este tema. “Isto tem repercussões brutais.” Há uma quebra acentuada no material detectado. 

O desacordo 

Em Setembro, a Comissão propôs uma derrogação temporária de parte de dois artigos da Directiva de Privacidade Electrónica. Uma legislação de fundo foi anunciada com a Estratégia da União Europeia para uma luta mais eficaz contra o abuso sexual de crianças, adoptada no dia 24 de Julho de 2020. Enquanto não chega essa, que responsabiliza as empresas pela detecção e denúncia de materiais de abuso sexual de crianças, apresentou uma proposta legislativa provisória.

Em Outubro, o Conselho, então presidido pela Alemanha, assumiu a posição do Comissão. Já em Dezembro, o Parlamento Europeu, seguindo o Comité do Emprego e dos Assuntos Sociais (LIBE), tomou posição distinta. Ninguém está contra a necessidade de encontrar um equilíbrio do direito à privacidade e o combate à pornografia infantil e outros crimes. Diferem na forma.

A pressão está a vir de vários lados para que o trílogo chegue a um acordo rapidamente. Ainda segunda-feira, dezenas de eurodeputados, incluindo uma portuguesa, Isabel Carvalhais (PS), assinaram uma carta aberta aos envolvidos nas negociações. “Todos os dias contam, porque cada dia sem se adoptar a prerrogativa temporária significa que inúmeras crianças ficam desprotegidas, porque as empresas de tecnologia não conseguem mais detectar os abusos online e a polícia não consegue mais salvá-las, com impunidade dos perpetradores”, lê-se.

Fontes da presidência portuguesa garantem que este tema é prioritário. Desde o dia 1 de Janeiro até ao final desta semana, contarão oito reuniões de peritos.

Os pontos da discórdia 

Em causa estão três tipos de ferramentas: há as que pesquisam imagens de abuso sexual de crianças que já antes foram analisadas e classificadas pelas autoridades, as que detectam imagens suspeitas e que têm de ser verificadas por pessoas e as que identificam padrões nas próprias conversas.

O Parlamento desconfia sobretudo da tecnologia de monitorização de mensagem em busca de indícios de grooming. Aceita que seja usada para detectar padrões, não para compreender a substância do conteúdo das mensagens. Pede que essas tecnologias sejam sujeitas a autorização prévia da autoridade competente, o que o conselho entende que demoraria.

Nas negociações sobre o regulamento temporário, os representantes do Parlamento têm insistido que os dados ​​devem ser analisados ​​por pessoas antes de serem enviados para as autoridades. O conselho, por sua vez, tem sustentado que é impraticável submeter todas as imagens ao olhar humano.

Os negociadores do conselho batem-se pelo uso exclusivo de meios técnicos ​​para sinalizar conteúdo potencialmente suspeito, que deve ser encaminhado para as autoridades, onde os utilizadores terão as garantias do sigilo profissional, do segredo de justiça, da presunção de inocência. A tecnologia consegue identificar quem transmitiu o conteúdo, se o utilizador já antes foi sinalizado, se o conteúdo tem alta taxa de circulação num grupo específico. Embora saibam que os “indicadores-chave” do algoritmo não oferecerem uma garantia de 100%, entendem que os fornecedores de software têm interesse em garantir que as taxas de erro sejam as mais baixas possíveis.

Outro ponto de discórdia é o prazo. O Parlamento quer que o material seja destruído no prazo de três meses. E o conselho defende que as imagens, sendo provas, devem ser preservadas até o processo ficar concluído.

“Não é fácil”, comenta Tito Morais. “Tivemos uma situação de vigilância em massa por parte do governo dos Estado Unidos, que deu origem a situações como a do Edward Snowden. Não podemos passar para uma outra em que isso seja feito por empresas de cariz tecnológico.” Parece-lhe, mesmo assim, que algo falhou no processo. “Se o tema tivesse sido tratado atempadamente, havia equilíbrio antes da entrada em vigor do código.”

A Polícia Judiciária deu conta de um aumento de sinalizações durante a crise pandémica. Carlos Cabreiro, director da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica, desdramatiza o efeito deste hiato. Algumas empresas continuaram a usar aquelas ferramentas e essa não é a única forma que as autoridades têm de chegar àquele tipo de material, mas está expectante. “Estamos a falar da adaptabilidade da legislação às necessidades da investigação, resume. “É relevante em termos preventivos e em termos de combate.”

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