“Dá mais trabalho” do que um simples texto, mas “o que colhemos é diferente”: como se constrói a interactividade no PÚBLICO

Numa altura em que o jornalismo se tem reinventado, cresce o investimento do PÚBLICO em artigos que permitam ao leitor fazer parte da história. Os formatos variam, mas o gosto pela interactividade é uma constante que une Rui Barros, jornalista de dados, Sofia Neves, jornalista da secção Online, e os infografistas Francisco Lopes e José Alves.

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Rui Barros utiliza linguagem de programação R para fazer jornalismo de dados Unsplash

Quem conduz a sinfonia que são os grandes trabalhos de multimédia do PÚBLICO online, e que instrumentos a compõem? Na verdade, trata-se de uma tarefa relativamente complexa, mascarada pela facilidade de navegação que permite aos leitores. Dos dados às infografias e às ilustrações, passando por uma história rica para se contar com interacções web, são bastantes os intervenientes harmonizados nestas reportagens - cada vez mais completas com a convergência de formatos no jornalismo online

Rui Barros é jornalista de dados, o único da sua espécie no PÚBLICO, e no seu dia-a-dia “entrevista bases de dados para conseguir histórias”. Argumenta que o seu trabalho não diverge muito daquele de um jornalista tradicional, cuja função também parte de questionar, mas fá-lo através da “estatística e análise de dados”. 

Sofia Neves também é jornalista da secção Online no PÚBLICO, mas só recentemente deu os seus primeiros passos no jornalismo interactivo. Mais precisamente, três passos: na série Raio-x a três surtos descreve como se sucederam três grandes episódios de contágio do novo coronavírus em Portugal. José Alves e Francisco Lopes foram os responsáveis pela “estrutura do trabalho, a forma como iria ser visualizado, até aos desenhos e à parte mais interactiva de programação web com HTML e CSS”, na série. 

Que histórias nos podem contar os dados?

No caso de Rui Barros, o conteúdo depende bastante dos dados disponíveis e as histórias surgem, então, de duas formas: ou aparece uma base de dados interessante que vale a pena explorar, ou procuram-se os dados necessários para abordar temas emergentes. No primeiro cenário, é feita uma análise preliminar dos dados para perceber “se há uma história ali” e que pessoas devem ser ouvidas sobre o assunto. Já no segundo cenário, ao mergulhar num tema para o qual “é importante olhar” torna-se necessário descobrir que dados se incorporam melhor e “o que existe para responder às perguntas”.

Com uma perícia de leitura de dados já bem aguçada, encontra neles as potencialidades para desenvolver “aplicações noticiosas (news apps)” que representem visualmente a informação. Para tal, acontece sempre uma análise inicial, que garante ser “a parte menos visível dos trabalhos, mas que por vezes toma mais tempo porque os dados não têm qualidade, ou é preciso ‘limpá-los’ [retirar informação em excesso]”. Depois de descarregar uma base de dados, e preparar um conjunto de questões para lhe colocar, aplica os seus conhecimentos da linguagem de programação R, que, aliados aos de estatística, “influenciam a capacidade de colocar perguntas”.

Rui garante que quando se começa a “entrevistar” uma base de dados tanto se pode concluir que os dados não são muito fiáveis - “há algo que não bate certo e é preciso fazer perguntas para perceber porquê” -, como podem surgir novas questões ao aparecer algo interessante que indicia a presença de uma história - os chamados outliers [casos estranhos nos dados]. “Às vezes os números apontam pistas, mas não nos explicam tudo”, conta, sublinhando a importância de cruzar essa informação com especialistas.

É frequente o resultado final assemelhar-se a um artigo normal com “uns gráficos no meio”, explica. Contudo, há situações em que “os dados são tão ricos que permitem dar ao leitor a possibilidade de explorar aqueles números e localizar-se na história”. Tem sido o caso de temas relativos à pandemia, onde há um esforço por “hiper-personalizar” o artigo, mostrando ao leitor os dados do seu interesse. Rui destaca um artigo que tinha acabado de publicar sobre os níveis de confinamento dos vários concelhos: “Como tínhamos os dados para 154 concelhos, achámos por bem que merecia de alguma forma ter os gráficos e esta parte interactiva para permitir ao leitor explorar o seu concelho. Mas, também, que fosse gerado um texto automático que falasse ao leitor sobre o seu concelho, porque às vezes é difícil interpretar o que estamos a ver num gráfico.”

Neste tipo de projectos, “o tempo é relativo”, explica, e varia com o nível de complexidade dos dados e do assunto. Recorda o seu trabalho mais longo, começado por volta de Maio e publicado a 21 de Outubro: “Foi aquele sobre os gastos com a pandemia. Nós tínhamos, na altura, 16.996 contratos e foi preciso analisá-los e catalogá-los em tipos de despesa. Para isso, houve todo o trabalho de construir pequenos robôs de análise e limpeza de dados.” 

Robôs, estes, que são tão falíveis quanto quem os constrói. “É um ser humano que o está a escrever [o código], e obviamente pode ter erros e coisas que não estão a ser bem feitas”, esclarece. Como tal, impõe-se uma verificação constante do que está a ser feito pelo código antes de se tirarem conclusões sobre os dados. “Quando aparece alguma coisa muito estranha, que em teoria seria uma notícia, eu suspeito sempre ser um erro do meu lado ou mesmo dos dados antes de ser uma história”, conta.

Rui Barros vê a divulgação dos dados como um pilar da democracia. Reconhece que já existe bastante transparência mas preferia que o Governo e as instituições públicas publicassem ainda mais dados e com maior frequência, já que são cruciais para “perceber padrões e até lançar o debate sobre determinado tema”. Recorre ao portal da transparência do SNS para dados sobre o estado da saúde, ao portal BASE para aceder aos contratos públicos realizados, ao Dados.gov para informação variada sobre as instituições públicas, e, por vezes, encontra dados nos próprios sites dos ministérios ou de empresas. Há, ainda, casos em que são as bases de dados, privadas, que encontram o seu caminho até Rui. “Os dados no fundo são como qualquer outra fonte jornalística e é preciso sempre questionar: alguém tem interesse nestes dados, ou que eles saiam desta forma? Há alguma coisa que devo considerar que não estou a pensar em relação a estes dados?”

O jornalismo de dados tem sofrido um impulso por várias redacções a nível mundial à medida que também o jornalismo online se reinventa. E, como tal, o jornalista destaca a importância destes profissionais durante a pandemia: “Já tinham um olhar treinado para dados e rapidamente alertavam para os problemas de apresentar os números desta forma ou daquela.” “É curioso perceber que as grandes redacções de todo o mundo que têm grandes equipas de jornalistas de dados estão a fazer trabalhos brutais porque têm gente com competências de programação e de análise de dados”, prossegue, concluindo que o PÚBLICO, na devida escala, certamente é uma delas. Considera que a capacidade de manipular os dados numa “página que não é estática e que permite configurar a história para o leitor” contribui em muito para o exercício do jornalismo informativo e de qualidade. Contudo, Rui não ousaria classificar esta vertente de jornalismo como “o futuro” - “Até porque diria que já é o presente”, corrige.

O que vem primeiro, o conteúdo ou a forma?

Para Sofia Neves, tudo começou em Junho, quando se inspirou num “trabalho do El País semelhante que explicava como a covid-19 se tinha espalhado em determinados sítios” e viu interesse em adaptar casos portugueses ao formato. Quando perseguiu as histórias já tinha em mente fazer um interactivo, até porque ao falar com as equipas de saúde sobre os surtos fez questão de entrar em pormenores. Por exemplo, convinha-lhe saber “se havia ventilação nos espaços”, por causa do desenho.

Mas esta harmonia entre conteúdo e forma nem sempre foi possível de manter. Inicialmente tinha visionado cinco surtos, mas apenas três foram publicados. Num dos casos não conseguiu obter a informação sobre o surto “em tempo útil”, no outro a especificidade do contexto do surto não permitia uma boa compreensão no formato de multimédia. “Percebemos que esse surto era muito mais difícil de desenhar e de se entender do que estes três”, explica Sofia. Seguiram, então, em frente três artigos explicativos de surtos em Portugal: um numa fábrica, um num lar, e outro numa obra. “Fiz as entrevistas com as equipas de saúde e depois delineei a informação de forma a que fosse mais fácil a [equipa de] Infografia pegar e ter os elementos todos”, lembra. 

Como a informação não surgiu toda de uma só vez, Sofia foi tendo reuniões e conversas suplementares com a equipa de Infografia, à medida que o projecto avançava - tanto a nível informativo como visual. “Eles faziam aquilo em caixas, que é como está publicado agora na fase final: temos caixinhas e vai avançando e vamos vendo a evolução do surto”, descreve. Umas vezes era a jornalista quem tinha de “adaptar o texto final às caixinhas”, outras era a equipa que tinha de criar mais caixas ou adicionar mais elementos ao desenho. Com “uma verificação até ao último minuto”, foram avaliando se o artigo fluía bem e se era coerente.

No surto da fábrica, fez uma sugestão para o desenho que acabou por se tornar crucial por estar directamente relacionada com a propagação do vírus: “O trabalho daquele funcionário era mesmo andar por toda a fábrica e recolher amostras”, pelo que  achou “engraçado” mostrar “como a pessoa que estava infectada se movia por toda a fábrica”. Além disso, entendeu também criar um menu na reportagem que permitisse aos leitores navegarem entre os três surtos.

O jornalismo não se pode fazer só destes trabalhos

A recepção dos leitores foi calorosa, recorda: “Custou um bocadinho arrancar estas informações às autoridades de saúde, mas depois viu-se que as pessoas gostaram e perceberam e acolheram bem o objectivo do trabalho”. Lembra-se de receber elogios que “distinguiam o poder do jornalismo online do poder da edição em papel”, entre incentivos para se fazerem mais trabalhos destes - algo que Sofia, apesar de desejar, compreende ser difícil. 

Trata-se de um processo complexo, para o qual nem sempre há uma disponibilidade constante. Sofia acredita que teve o papel “mais fácil”, já que deixou as histórias escritas rapidamente e depois a equipa de Infografia foi desenhando. “Uma equipa de Infografia e de jornalistas não pode estar, nesta altura, uma semana com o mesmo trabalho - era bom estarmos! -, sendo que temos as exigências da actualidade e tudo o que está a acontecer com o que a pandemia exige”, defende. 

Não obstante, a jornalista acha que este pode muito bem ser o futuro do jornalismo, também ele amplificado pela pandemia: “A pandemia e o volume de informação vieram provar que as pessoas ao fim de alguns dias estão fartas de texto e de números.” Sofia realça que este tratamento da informação é “muito mais apelativo”, e sublinha que se deve continuar a investir na convergência de formatos no jornalismo. “Dá mais trabalho do que fazer um simples texto, mas depois o que colhemos é diferente”, conclui.

Francisco Lopes foi o primeiro a agarrar-se à construção visual do projecto, o que ditou que se seguisse a sua linha de pensamento. Contudo, assegura: “Adaptamo-nos uns aos outros para complementarmos o trabalho.” José Alves defende que o autor, ou seja, o jornalista, tem sempre a primeira e última palavras, de maneira a cumprirem-se os seus objectivos. Por sua vez, os infografistas vão adicionando ou melhorando informação, “com mais cabeças”.

O facto de terem feito a implementação web além do desenho trouxe “algumas vantagens e muitas desvantagens”, anuncia José. O infografista explica que isso lhes permitiu definir as potencialidades do trabalho. No entanto, “nós colocamos sempre a fasquia um bocadinho mais à frente”, admite, revelando que isso se transforma facilmente numa desvantagem por nem sempre conseguirem executar tudo o que ambicionam. Francisco exemplifica que o primeiro surto, o da fábrica, continha “tantos detalhes de movimentos das pessoas e dos objectos que passavam”, mas os seguintes já não tinham essa estrutura e tiveram de ser adaptados. José contrapõe que essas situações são inevitáveis: “A Sofia já tinha o texto da fábrica e nós não sabíamos bem o que vinha a seguir.” Para contornar a incerteza, a equipa manteve-se em sincronia com a jornalista, pedindo que nas entrevistas fossem colocadas as questões que interessavam ao desenho. Os infografistas revelam que não foi fácil manter a coerência entre os três trabalhos, de maneira a serem visualizados da mesma forma.

Ambos acreditam veemente que esta envolvência do leitor com storytelling visual é o futuro, e lamentam que em Portugal não seja tão explorada. Os infografistas fazem este tipo de projectos “para aí há dois anos”, tendo começado com uma peça sobre os Rohingya - “numa fase um bocado prematura, mas a base da visualização é storytelling”, relembra Francisco. 

A causa está na “falta de recursos”, exclamam entre risos. “Recursos humanos”, corrige José, garantindo que a evolução tecnológica está no seu auge. Embora não seja o caso do Raio-x a três surtos, “80% ou 90%” deste tipo de desafios interactivos são habitualmente propostas da equipa de Infografia do PÚBLICO, relatam. “Deu uma trabalheira, mas valeu a pena”, aponta José, ressalvando que é reconfortante terminar o projecto e ver como os leitores ficaram agradados.

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