O coração ainda bate. O troféu

A música tem-me nas mãos como se continuasse a entrar triunfante naquele Polivalente.

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Mag Rodrigues

Era o Polivalente. Era ali que centenas de miúdos se cruzavam entre intervalos, furos, talvez umas faltas, um tempo no bar.

O PBX por onde as funcionárias encaminhavam as chamadas em intermináveis extensões, também ficava por ali. A forma como nos sentávamos, e, sobretudo, onde nos sentávamos, determinava o grupo a que pertencíamos ou queríamos pertencer. Eu andei sozinha muito tempo. Até encontrar o meu lugar.

Em casa ouvíamos muita música. O meu pai passava as tardes de fim-de-semana a comover-se com Amália e Marceneiro. A minha mãe, mais dada ao Brasil, repetia vezes sem conta a cassete que o meu irmão lhe gravara e onde a voz grave de Maria Bethânia parecia gastar ainda mais a fita da cassete.

Foi mesmo uma cassete que salvou a minha vida: tinha Sérgio Godinho de um lado e Smiths do outro. Era como se o mundo se resumisse àquela BASF mesmo que na aparelhagem reluzente ouvíssemos sem parar o duplo de Simon and Garfunkel ao vivo no Central Park. (Faltariam muitos anos para lá ir e imaginar uma multidão arrepiada a presenciar a História).

Ter um irmão mais velho foi uma sorte grande: sorte que não dei à minha filha e por isso talvez me tenha responsabilizado por lhe dizer a cada jantar as bandas de que gosto, aquelas com que cresci, as que me fazem chorar ainda. Se a minha filha gosta de Kate Bush desde os 9 anos (?) é porque se lembra dos pais a ouvirem-na. Os pais, num ato de preguiça tão justificável como

outro qualquer, às vezes demitem-se dessa educação musical por não quererem impor (verbo comum) o gosto deles aos filhos. No meu caso, não imponho nada. Dou pistas e quero que ela se lembre daquilo que a mãe gostava e como a música foi sempre uma salvação.

Tinha 15 anos, talvez menos, quando irrompi pelo polivalente adentro com um vinil dos Echo & The Bunnymen debaixo do braço. Era o Porcupine. Estava novinho em folha e não sei se tive permissão do meu irmão para o levar comigo, ou se fiz uma finta à verdade e me escapei com ele. Do que me lembro foi da minha entrada triunfante no Polivalente ostentando o meu troféu como se dissesse: eu sou esta, agora escolham-me.

Os factos, como as canções, escolhem o aleatório para contar o resto da história: por causa daquele disco conheci gente que continua perto de mim 35 anos depois, e mesmo estando agora longe, sabemos que continuamos perto pelo que vivemos. Pela proximidade naquele Polivalente.

Depois das cassetes e dos discos, havia de ser inevitável ir parar à rádio, gostar de ouvir música, e mais: dá-la a conhecer ou partilhá-la com os outros.

Nestes dias do confinamento com listas feitas de canções que atravessam estes meses de martírio no mundo, são incontáveis os momentos em que me senti salva pelo poder da música. Acordar e não ter uma canção a repetir-se em mim é muito raro. Até em dias tristes. Ou sobretudo em dias tristes.

Agarrei nesta página em branco depois de ouvir Fiona Apple a cantar uma versão do The whole of the moon dos Waterboys. O que nós ouvimos o This is The Sea e o A Pagan Place!! Discos que celebrávamos até por termos tão poucos.

A Síndrome de Stendhal apanha-me pela música: as pernas tremem, a cabeça fica presa num arrepio que chega ao corpo, e não justifico a facilidade com que me comovo de forma súbita e despropositada. Acho que se chama a isto estar vivo.

Anos depois, a música tem-me nas mãos como se continuasse a entrar triunfante naquele Polivalente.

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