Reforma da PAC, agropolítica e 2.ª ruralidade

Sem uma PAC fortemente agroecológica e territorialista não reuniremos condições materiais suficientes para uma baixa densidade virtuosa.

Até 2050 estaremos em estado de emergência climática por causa da neutralidade carbónica e da ação climática que estamos obrigados a cumprir. Esta é a razão pela qual a reforma da PAC para a próxima década deverá revestir uma orientação mais agroecológica com base nos sistemas agroalimentares (SAL) e agroflorestais (SAF) de proximidade, eles próprios concebidos e desenhados para desempenharem funções de infraestrutura ecológica e corredores verdes. Seja como for, as opções em presença não podem ser pensadas em abstrato, pois existem sempre as relações de poder no coração do sistema agropolítico.

As relações de poder no sistema agropolítico

Sabemos que em mercados abertos e globalizados, mas insuficientemente regulados, há mais intensificação agrária e, correlativamente, maior pressão sobre os recursos naturais, o solo, os ecossistemas e a paisagem. Sabemos, também, que uma agenda política mais biotecnológica e intensiva acarreta o empobrecimento das comunidades locais e das formas de agricultura tradicional, assim como, uma crescente simplificação dos ecossistemas, com abandono, fragmentação e concentração da propriedade.

Sabemos, ainda, que não é fácil, politicamente, o equilíbrio entre a opção intensiva e exportadora e a opção mais conservacionista e agroecológica, na linha de uma “reserva estratégica alimentar e biodiversidade correspondente” tendo em vista cumprir um leque convergente de objetivos fundamentais, a saber, o ordenamento do território associado à economia agroecológica, a conservação de recursos e a biodiversidade in-situ, a conexão entre paisagem, unidades de paisagem e serviços de ecossistemas, a relação de complementaridade e integração cidade-campo.

As relações de poder neste domínio irão traduzir-se num equilíbrio difícil e precário no âmbito do que eu designo como a “2.ª ruralidade”, isto é, numa coabitação complexa entre o modelo bioprodutivista (economia of scale) e o modelo agroecológico (economia of scope).

Sabemos, ainda, que se não houver um equilíbrio bem proporcionado entre aquelas duas grandes opções, estaremos, progressivamente, a consumar a separação entre a reserva estratégica alimentar, a base biodiversa correspondente e os territórios que as acolhem. Não surpreenderá, então, que assistamos a uma concentração do poder de controlo sobre os recursos naturais, ao alargamento das escalas de produção, à disseminação das monoculturas, à monotonia biofísica e ao empobrecimento da diversidade social dos territórios. A tabela resume as principais características das duas opções:

PÚBLICO -
Aumentar

No final, assistiremos a uma profunda alteração das relações de poder implicadas por esta mudança de escala e de estratégia, que privilegia os sectores a jusante da fileira (distribuidores, transportadores e retalhistas) em detrimento dos sectores a montante (agricultores, agroturismo e turismo rural). Quer dizer, sem uma institucionalização forte que imponha regimes de reciprocidade no comércio internacional e proporcione algumas externalidades positivas fundamentais (no ambiente, conservação dos solos e biodiversidade, ocupação dos territórios desfavorecidos) não haverá condições externas para reterritorializar muitos espaços e outras tantas relações cidade-campo, hoje severamente atingidas, ou seja, sem uma PAC fortemente agroecológica e territorialista não reuniremos condições materiais suficientes para uma baixa densidade virtuosa.

2.ª ruralidade e baixa densidade virtuosa

Está em curso a reforma da PAC para a próxima década. Vejamos o que poderia ser uma visão mais agroecológica da reforma da PAC, na linha do que se vai escrevendo sobre coesão social e territorial e do que eu designo como “baixa densidade virtuosa”.

São passados 35 anos sobre a adesão à CEE e muitos milhões de fundos europeus. Não me conformo com um país tão pequeno, tão bem dotado de vias de comunicação, com uma rede distrital de instituições universitárias e politécnicas e, ainda assim, caracterizado por fortes assimetrias regionais, uma agricultura descapitalizada e cidades do interior de pequena dimensão e com fraco poder de aglomeração. E, 35 anos depois, porque continuamos a repetir os mesmos diagnósticos de abandono, despovoamento e desertificação, não obstante as honrosas exceções? Estou convencido de que isto é assim porque, no plano corporativo, a agricultura cristalizou em redor de três grandes organizações corporativas – CAP, Confagri e CNA – que, no essencial, mantêm a ideologia de sempre, ou seja, o lobbying institucional e político. De um lado, a versão proprietária, média e grande, dos grupos familiares, de outro, a versão cooperativa e/ou associativa e o que resta dela e, finalmente, a versão comunitária, uma miríade de micro e pequenas explorações, todas elas com pouco ou nenhum capital financeiro e capital de gestão. Eu acrescentaria, agora, uma quarta versão corporativa, aquela que diz respeito aos fundos de investimento nacionais e estrangeiros com interesses importantes, em especial no Alqueva, mas não só.

Esta agricultura corporativa a quatro dimensões trata “a restrição ambiental”, essencialmente, como política de “mitigação de danos”: os quatro grupos praticam a “dissimulação verde” com a competência que lhes é reconhecida em matéria de influência política, mas, na maioria dos casos, sem competências profissionais de gestão para tanto aparato ambiental. Estou convencido de que uma das vias para confrontar esta agricultura corporativa e conservadora é “consagrar novos modelos de organização do território e democratizar o acesso à sua gestão, em especial, os modelos de gestão triplo A” (agricultura, ambiente, alimentação, AAA). Nesse sentido, seriam privilegiadas (majorados os incentivos) as propostas de investimento que apostem no modelo de gestão triplo A e, igualmente, privilegiados os modelos de organização e gestão que privilegiem a coesão social e territorial, por exemplo:

  • Os modelos de “condomínio rural”,
  • Os modelos cooperativos de produção e distribuição local e regional,
  • Os modelos AAC (agricultura acompanhada pela comunidade de agricultura urbana e de suporte ao institutional food),
  • Os modelos CIM (comunidade intermunicipal) de suporte a sistemas produtivos locais,
  • Os modelos “parque agroecológico intermunicipal” de fins múltiplos, produtivos, recreativos, pedagógicos e terapêuticos,
  • Os modelos “parque natural e área de paisagem protegida”,
  • Os modelos ambulatórios de prestação de serviços multifuncionais, prestados, por exemplo, por start up e laboratórios colaborativos.

Em todos estes casos, é privilegiada a “inteligência coletiva territorial” (ICT), em particular, pela constituição de plataformas colaborativas apropriadas. Nesse sentido, a reforma da PAC deve considerar e prever a constituição de alguns “laboratórios colaborativos” onde os serviços regionais, as instituições de ensino superior e as organizações profissionais possam fazer convergir os seus interesses, em particular, cofinanciar serviços de incubação empresarial, gestão agroambiental e extensão rural.

Notas Finais

Em síntese, parece-me avisado abordar a reforma da PAC pelo lado da coesão social e territorial, em especial, favorecendo as propostas inovadoras de gestão AAA e ICT, como são aquelas que aqui referi. No final, não se trata de criar um sistema dicotómico de agricultura e desenvolvimento rural, mas, antes, uma rede de complementaridades e compromissos entre os mercados globais e os mercados locais, em que se atende e valoriza o pluralismo dos modos de fazer agricultura, de produzir alimentos, de salvaguardar a saúde dos ecossistemas, de proteger e valorizar os territórios mais desfavorecidos e de acautelar, nesta rede de relações, a saúde pública e o bem-estar das populações.

Uma nota final para recordar que os programas operacionais regionais de cada região NUTS II são o quadro apropriado para levar a bom termo a realização das reformas da PAC, não apenas pela massa crítica de recursos e medidas de política que reúne, mas, também, pelos efeitos de rede e aglomeração que proporciona. Nesse sentido, o viés corporativo dos interesses setoriais deve ser contrariado, pois o tempo é de mudança.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar