Hipermercados e Fnac podem vender discos, mas não livros – embora vendam alguns

A concorrência desleal com as livrarias levou o Governo a proibir a venda presencial de livros noutros espaços, mas as lojas de discos também estão fechadas e não beneficiaram da mesma protecção. E as grandes superfícies parecem ter inventado uma excepção, que a lei não prevê, para vender livros de apoio ao estudo.

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A loja da Louie Louie em Lisboa NUNO FERREIRA SANTOS

Se entrar num hipermercado ou em cadeias de lojas que vendem bens culturais, mas também computadores, telemóveis e outros produtos cuja comercialização presencial não está interdita, como a Fnac ou o El Corte Inglés, encontra um cenário algo desconcertante: pode comprar discos ou filmes, mas as zonas dedicadas aos livros estão vedadas ou cobertas com plásticos. Com uma notória excepção: os livros de exercícios, cadernos de exames e outros materiais de apoio ao estudo não só estão à venda como, no caso das Fnac, enchem os escaparates onde nos habituáramos a ver os mais recentes best-sellers de ficção ou de literatura dita de auto-ajuda. Uma excepção que não parece, aliás, ter qualquer fundamento legal.

O PÚBLICO tentou ouvir o Ministério da Cultura acerca da situação do livro, área que está sob a sua tutela, mas foi remetido para o Ministério da Economia, que até ao momento também não respondeu às perguntas enviadas já na quinta-feira.

A proibição de venda presencial de livros em todos os espaços que os comercializam tem vindo a ser duramente criticada pela APEL, mas foi justificada pelo Governo com a necessidade de evitar – diz o despacho n.º 714-C/2021 – “um certo desequilíbrio de mercado”, que resultaria de um cenário em que hipermercados e outros espaços que podem legalmente estar abertos seriam autorizados a vender livros em loja, quando as livrarias estão encerradas e nem sequer podem recorrer à venda ao postigo ou à porta.

A eventual pertinência deste argumento não elimina a estranheza de se limitar a venda de livros ao comércio electrónico num país que reconhecidamente precisa de estimular hábitos de leitura e que talvez por isso mesmo aplica aos livros (descontados os que são maioritariamente publicitários ou de conteúdo pornográfico) a taxa reduzida de IVA (6%), considerando-os um bem essencial. O mesmo não acontece com os discos, que pagam 23% de IVA, desde logo por razões que se prendem com a legislação comunitária, o que pode ser considerado uma discriminação injustificada de um bem cultural face a outro, mas que, existindo, pareceria dever constituir mais um argumento para não se privilegiar a venda de discos (ou filmes em DVD) em detrimento da de livros.

Mas seria ainda preciso explicar por que é que o mesmo princípio de evitar um cenário de concorrência desleal não é aplicado aos discos, que as lojas especializadas só podem vender online, mas os hipermercados e as cadeias Fnac, Worten ou Media Markt estão autorizados a vender livremente nos seus próprios espaços.

Um cantinho esquecido

Jorge Dias, da loja lisboeta da Louie Louie, que começou por abrir no Porto mas se expandiu para a capital em 2007, tem uma explicação simples: há poucas lojas de discos de dimensão razoável, e as restantes “são de um âmbito tão reduzido” que se torna difícil criar uma organização capaz de se fazer ouvir e de pressionar o poder político, como a Rede de Livrarias Independentes (RELI), criada durante o primeiro confinamento e que conta já com mais de uma centena de associadas. “Nunca há legislação que favoreça as lojas de discos, e a que existe é só para complicar”, diz o responsável da Louie Louie. “Somos um cantinho esquecido do comércio.”

A Louie Louie vende discos em segunda mão, mas também novos lançamentos, e nesse campo, por muito que Jorge Dias tente especializar a oferta, “há, pelo menos tecnicamente, uma concorrência com a Fnac”. De portas fechadas e com os seus três funcionários em lay-off, a loja vai-se aguentando com as vendas online, que “subiram um bocadinho” e com um apoio da Câmara de Lisboa às lojas de rua, mas Jorge Dias sabe que não poderá continuar assim muito tempo. “Resiste-se até um certo ponto, mas se não houver dinheiro para pagar aos empregados e para ir comprando os discos que saem, isto torna-se impossível.”

A possibilidade de venda ao postigo poderia ser uma ajuda, mas para uma loja com as características da Louie Louie, que aposta numa relação muito personalizada com os clientes, e por isso mesmo conseguiu sobreviver num meio ameaçado pelos downloads ilegais, é mesmo essencial ter a porta aberta. “É algo que não se consegue replicar” no comércio electrónico”, diz Jorge Dias. “E se era para vendermos online, então fechávamos a loja e abríamos um site.”

Abílio Silva, proprietário da Compact Records, que opera em diferentes áreas de negócio relacionadas com a música e que detém as lojas de discos Tubitek, concorda com o diagnóstico traçado por Jorge Silva. “Somos poucos, e mesmo que façamos barulho não nos serve de nada”, constata. Mas precisa que não quer o mal de ninguém e, embora considere que “não é justo” que as Tubitek – com lojas no Porto, em Braga, em Leiria e em Lisboa – estejam encerradas e outros espaços possam vender discos, até acha que “se a Fnac pode estar aberta, ao menos que venda discos”.

Na sua opinião, as lojas de discos deviam poder abrir e “o Governo devia era fechar os centros comerciais, porque esses é que são os grandes propagadores da pandemia, mas em, Portugal, como em todo o lado, os lóbis ainda têm muita força”.

Ao contrário de Jorge Dias, cuja loja só está autorizada a vender discos e livros, e que teria de enfrentar alguma burocracia – e de fazer investimentos que a duração expectável do confinamento dificilmente justificaria  se quisesse fintar a lei e começar a vender telemóveis ou frigoríficos para também poder vender discos, já as Tubitek, uma vez que a Compact Records tem negócios diversificados, até dispõem de uma licença que lhes permite venderem diversos tipos de produtos. “Se quisesse, até podia lá instalar umas máquinas e vender pão, mas não era sério”, diz Abílio Silva.

Fornecedora de multinacionais como a Amazon, a Compact Records até teve “um ano bom” em 2020, e não pôde recorrer a apoios, o que o seu proprietário considera justo. “O mal é as  lojas estarem fechadas: pago 12 mil euros de renda pelas quatro, e já adiantei todo o ano de 2021”, conta Abílio Silva, que apesar de as vendas online estarem a subir e de confiar que os discos, contra os vaticínios mais pessimistas, são “um negócio com futuro”, receia os tempos mais próximos. “As pessoas aguentaram bem o primeiro confinamento, mas agora já passou muito tempo, há muta gente em dificuldades, e nada vai ser igual.”

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