A “cacofonia” é um vírus. Com a saída de cena de Graça Freitas, falta uma voz para o travar

Desgastada, Graça Freitas deixou de ser “a voz técnica” capaz de informar os portugueses sobre a pandemia. Se não quer perder de vez a confiança dos portugueses, o Governo devia arranjar e depressa uma figura tipo Anthony Fauci ou o epidemiologista-chefe da Suécia, dizem vários especialistas. Alguém capaz de garantir “sínteses de consenso” e de acabar com a actual cacofonia. E capaz, já agora, de impedir que António Costa continue a usar as “idas ao Infarmed” para legitimar a sua narrativa política.

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MANUEL DE ALMIADA/Lusa

O desaparecimento do espaço mediático da directora-geral da saúde, Graça Freitas, precisamente numa altura em que os mortos e os contagiados pelo Sars-Cov-2 batem recordes, mostra que houve uma mudança de estratégia na forma como o Governo comunica a evolução da pandemia ao país. Em que sentido é algo que nenhum dos especialistas ouvidos pelo PÚBLICO consegue descortinar.

Mas todos convergem numa certeza: a “cacofonia” instalada, aliada ao cansaço pandémico e ao ziguezague das medidas políticas, apresentadas por vezes num tom punitivo, e agravada pela recente demissão do coordenador do plano de vacinação, Francisco Ramos, exigem o aparecimento de uma figura ou de um órgão credível e independente, capaz de se afirmar como porta-voz de referência. No fundo, uma espécie de Anders Tegnell, o epidemiologista-chefe da Suécia, ou uma espécie de versão portuguesa do infecciologista norte-americano Anthony Fauci, ambos figuras independentes dos respectivos governos, com cujas orientações nem todos concordam, mas de cuja credibilidade ninguém parece duvidar.

Por cá os erros somam e seguem sob um “ruído ensurdecedor” instalado no espaço público em que todos falam e poucos concordam, o que está a fazer com que o Governo perca a confiança dos portugueses e a respectiva adesão às medidas adoptadas para conter o avanço da pandemia, aponta Tiago Correia, professor associado de Saúde Internacional e investigador sénior no Global Health and Tropical Medicine, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa.

“Não há uma mensagem coerente e, se perguntar aos portugueses qual é a voz autorizada, ninguém lhe sabe responder”, concorda José Manuel Mendes, coordenador do Observatório do Risco – OSIRIS, com sede no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

A investigadora Rita Araújo, do Centro de Estudos e Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, também acha que a cacofonia instalada “não promove a adesão da população às medidas, bem pelo contrário, e por isso é que o fecho das escolas, por exemplo, veio já embrulhado “num discurso de quase culpabilização das pessoas pelo não-acatamento das medidas”. E quando se faz comunicação do risco “com recurso ao medo e à ameaça”, como lembra José Manuel Mendes, acaba-se a promover “o jogo do gato e do rato, em que as pessoas só cumprem na medida em que não conseguem evitar o risco de transgredir sem serem sancionadas pelas autoridades”.

“Alguém de fora” para as vacinas

Na análise da estratégia comunicacional adaptada pelo Governo misturam-se, entre outras coisas, as “reuniões do Infarmed”, em que cientistas e políticos fazem o ponto de situação da epidemia, e cuja periodicidade e abertura ao público já conheceram várias versões, o desaparecimento das conferências de imprensa da Direcção-Geral da Saúde (DGS), que passaram de diárias a inexistentes, e a mais recente demissão do coordenador do plano nacional de vacinação, Francisco Ramos (prontamente substituído pelo vice-almirante Gouveia e Melo, até então o número dois daquela task force), chamuscado pelas trapalhices em torno do acesso indevido às vacinas.

Começando por este último aspecto, para recuperar a credibilidade do plano de vacinação não basta que o primeiro-ministro, António Costa, venha a público garantir que este está a ser um sucesso. “Não ter substituído Francisco Ramos por alguém de fora foi um erro fatal de comunicação”, considera José Manuel Mendes, para quem o Governo devia ter aproveitado para “assumir uma mudança recorrendo a uma figura com prestígio e desvinculada politicamente”.

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Daniel Rocha

“Já vimos os grupos prioritários definidos e redefinidos várias vezes e os desvios à lista de prioridades, por abuso de poder ou para evitar desperdício de doses, por mais residuais que sejam criam muita desconfiança nas pessoas”, reforça Rita Araújo, ao que José Manuel Mendes acrescenta: “Um dos erros do plano de vacinação é que nunca teve critérios suficientemente claros, além do que não se pode ter uma plataforma que continua a dizer às pessoas que elas vão ser vacinadas em Abril quando só o vão ser em Setembro.”

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Por outro lado, continua a não haver ninguém que explique por que é que em Portugal se guardam doses e em Inglaterra, por exemplo, se optou por vacinar mais gente espaçando no tempo a administração da segunda dose. “E qual é a posição portuguesa sobre a vacina da AstraZeneca? Vão administrá-la às pessoas com mais de 65 anos de idade ou não? Bem sei que a vacina ainda não chegou, mas, se queremos promover a confiança das pessoas, é fundamental que estas sejam informadas e bem informadas sobre estes aspectos. E não o estão a ser.”

Recuperar as conferências de imprensa da DGS e pôr Graça Freitas a elucidar os portugueses sobre estes aspectos já não parece ser uma opção viável. “A sua legitimidade como voz técnica desapareceu logo quando ela começou a aparecer nas conferências de imprensa ao lado da ministra, ou de um qualquer secretário de Estado — alguns dos quais apareciam nessas conferências mais atentos ao telemóvel do que ao sítio onde estavam —, isto já para não referir que o seu discurso técnico nem sempre foi consistente”, defende José Manuel Mendes, aproveitando para criticar o seu posicionamento do tipo deus ex machina, isto é, dispensando o diálogo.

“O anterior director, Francisco George, também era assim, mas era mais subtil, fingia que negociava”, recorda, lembrando que, ao contrário, na Alemanha, o painel de aconselhamento aquando do primeiro desconfinamento “tinha padres, filósofos e até um treinador de futebol”.

Para Tiago Correia “a directora-geral estava com uma imagem muito desgastada e descredibilizada”, apesar de “tecnicamente muito competente”. “Ela merece estar onde está, mas era preciso este abanão porque, apesar de competentíssima, se tornou ineficaz”, sublinha, para acrescentar que “nem alguém com o melhor aconselhamento e media training sairia imaculado disto”.

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Francisco Ramos Daniel Rocha

De resto, o investigador considera que o boletim diário da DGS, com referência aos mortos, recuperados, internados e infectados, basta para fazer chegar a informação aos portugueses. Apesar disto, na opinião de Rita Araújo, “se se começou esta estratégia de comunicação com o formato das conferências de imprensa centradas na figura da directora-geral da saúde, o seu desaparecimento devia ter sido comunicado às pessoas, que ficaram sem perceber esta ausência no momento mais complicado da pandemia”. “Isto criou um vazio de comunicação com o risco de esse vazio ser aproveitado por pessoas que não são especialistas”, diz a doutorada em comunicação em saúde, para quem não bastará que a própria Graça Freitas tenha aparecido publicamente, como fez nesta quinta-feira, a assumir que, “houve uma mudança na estratégia de comunicação”, mas sustentando apenas que “a directora-geral da saúde não precisa de aparecer, precisa de trabalhar”.

Costa usa “idas ao Infarmed” para legitimar narrativa

Quanto às “reuniões do Infarmed”, Tiago Correia começa por defender que “são imprescindíveis e é importante que sejam públicas”. Contudo, “estas reuniões são um somatório de partes, em que os cientistas de renome que lá estão apresentam peças de um puzzle sem ninguém que as junte. E depois são os governantes, uns mais aptos do que outros a compreender a evidência científica, que montam as peças como lhes parece melhor”. Resultado prático, no entender de José Manuel Mendes, o primeiro-ministro, António Costa, “usa aquelas idas ao Infarmed como uma legitimação da sua narrativa política”.

Falta assim, a montante dos decisores políticos, segundo Tiago Correia, “um grupo, uma instância ou uma figura científica inabalável que condense e agregue as peças daquele puzzle e que diga inequivocamente o que ele significa”, isto é, “alguém que faça uma síntese de consenso” dos dados epidemiológicos, retirando margem a que o Governo use a informação disponível segundo a interpretação que mais lhe convém. “Algo muito semelhante ao papel do epidemiologista-chefe da Suécia, que às vezes está contra as decisões políticas”, insiste.

E por que é que uma figura não existe em Portugal? “Em última análise, por decisão política e porque não há interesse nenhum que isso exista”, responde o investigador, para quem isto permite que o Governo continue a decidir em função do “ruído mediático”, sem capacidade para explicar “o racional” das medidas que vai adoptando “por vezes com menos de 15 dias de diferença”.

Um exemplo? “Quando o primeiro-ministro decretou o encerramento das escolas e a suspensão das actividades lectivas, faltou-lhe a explicação do que é que se pretende com a medida, e, consequentemente, do que se espera que seja necessário que aconteça para que seja revertida. Não disse, por exemplo, para quantos casos diários em média o país consegue voltar a fazer rastreios e assim controlar as cadeias de transmissão.”

O investigador diz-se preocupado com os custos desta espécie de navegação à vista. E porquê? “Porque quando os números começarem a baixar, e o pânico se atenuar, vamos voltar a ter o espaço público inundado de opiniões contraditórias e vai voltar a haver uma pressão brutal para que as escolas reabram, segundo uns, mas só as creches segundo outros, e depois as livrarias e os cinemas também vão querer reabrir, e o Governo vai voltar a reagir em função disso, por muito que haja o risco de a situação se voltar a descontrolar rapidamente”, alerta o investigador, para concluir que a manutenção desta cacofonia vai levar “as pessoas a desligar, a desconsiderar e a escolher a posição com que se sentem mais confortáveis”. E não, não é assim que se trava eficazmente uma pandemia.

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