Ser muito rico dá acesso à vacina? A elite global tenta

Dubai vai oferecer vacina chinesa em pacote de luxo para atrair turismo, enquanto a Florida tenta cortar “turismo de vacinas”. Há modos mais criativos para ter acesso a uma: um casal de milionários canadiano fez-se passar por funcionários de um hotel.

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Reuters/Government of Dubai Media Office
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Turismo de luxo incluindo vacinas? O Dubai quer abrir o caminho ALI HAIDER/EPA

O Dubai promove turismo de vacinas com pacotes com “tudo incluído”, a Florida tenta controlar o número de americanos de outros estados que tentam fazer “turismo de vacinas”. Quando as vacinas são um bem escasso, os muito ricos tentam obter uma dose para si. Alguns modos são ilegais e criativos, outros estão numa zona cinzenta, e outros ainda serão perfeitamente legais. Especialistas já tinham avisado que surgiria um mercado negro para um bem tão desejado.

Há várias semanas surgiram rumores de uma agência de viagens de luxo (para celebridades e realeza) do Reino Unido, a Knigthsbridge Circle, que estaria a oferecer um pacote de férias no Dubai com jacto privado, resort de luxo, e administração de duas doses de uma vacina contra a covid-19 (o espaço entre as duas doses deve ser de 21 dias). Os Emirados Árabes Unidos (EAU) estão a vacinar os seus habitantes a um ritmo muito rápido, e já antes da pandemia eram um destino popular para turismo de saúde (dois dos emirados, Dubai e Abu Dhabi, estão entre os melhores destinos do mundo segundo o Medical Tourism Index para 2020/21, nota a estação de televisão Al-Arabiya, com sede no Dubai).

No entanto, a Pfizer, parceira da BioNTech de uma das vacinas que está a ser administrada nos Emirados, disse que não vendia vacinas a particulares. Os Emirados também negaram, na altura, estar a vacinar qualquer pessoa que não residisse no território.

Mas agora a agência de viagens volta a fazer um anúncio semelhante, só que com a vacina chinesa Sinopharm, no que o diário britânico The Guardian chama “a primeira prova de utilização da vacina para atrair turistas”.

O clube de viagens disse ao jornal que através dos seus serviços, cinco residentes nos Emirados tinham recebido a vacina da Pfizer, e anunciou “uma parceria com os EAU para trazer turismo para a região”, disse um porta-voz ao diário britânico. “A estes turistas, é oferecida uma vacina da Sinopharm”. Além dos Emirados, a vacina tem autorização de utilização de emergência no Bahrein, e há uma semana foi aprovada pela primeira vez num país europeu, a Hungria.

Os Emirados não responderam a pedidos de comentários do jornal, e a Pfizer fez saber que encaminhou as alegações do clube para a sua equipa de segurança global para serem investigadas.

Não era clara a razão, notava o Guardian, pela qual um residente precisaria dos serviços da agência de viagens para ser vacinado, quando a vacina é oferecida pelo Estado a todos os residentes (a agência disse, em resposta, que incluía serviços como motorista). A agência diz que de momento não pode aceitar mais sócios nem na modalidade de 25 mil libras por ano, cerca de 28,5 mil euros) nem na de dez mil (11,4 mil euros) por três semanas. 

O que um residente pode fazer é uma zona cinzenta, pelo menos na Florida, que tem uma grande percentagem de pessoas que vivem no estado apenas parte do ano, e que se tornou num destino de turismo de vacinas.

O jornal Clarín, de Buenos Aires, contava que uma série de argentinos ricos tinham viajado para Miami para serem vacinados. A apresentadora de televisão argentina Yanina Latorre não só levou a mãe para ser vacinada, como documentou nas suas redes sociais a viagem para a segunda dose, depois de ter sido muito criticada após a primeira ida. “Fico contente por ter podido fazer isto por ela”, declarou Latorre.

O presidente da câmara de Miami, Francis Suarez, disse à televisão CBS que estas viagens são “uma bofetada na cara das pessoas desta comunidade que tentam ser vacinadas”, com as doses a serem ainda insuficientes para todos. Segundo os dados do departamento de saúde estadual, entre os 1,1 milhões de vacinados na Florida, 39 mil vivem fora do estado. As autoridades começaram agora a exigir prova de residência.

Celebridades pressionam médicos

Algumas pessoas com segunda casa na Florida sentem que “ganharam a lotaria”, contava o mediador de seguros de viagem canadiano Martin Firestone, de Toronto. Na cidade, espera-se que haja vacinas disponíveis fora dos grupos prioritários apenas no Outono. Os clientes de Firestone com casa na Florida não tinham planeado ir, como habitual, para sul neste Inverno, conta. “Só quando a vacina ficou disponível e começaram a ouvir que amigos já a tinham tomado é que decidiram ir também.”

O Canadá está a vacinar com prioridade alguns territórios, incluindo Yukon, remoto, montanhoso, e o menos povoado do país.

Tentando aproveitar-se desta hipótese, um empresário de casinos, Rodney Baker, e a sua mulher, Ekaterina, viajaram, aparentemente de avião privado, até uma localidade do território, Beaver Creek. Lá, dirigiram-se a uma unidade de vacinação móvel e, dizendo que eram trabalhadores de um hotel, levaram a primeira dose da vacina.

Foram, no entanto, apanhados, e depois da enorme indignação que o caso provocou, Baker demitiu-se do cargo de presidente e CEO da empresa que dirigia. Há pressões para o casal ser processado.

Nos Estados Unidos, médicos de celebridades, atletas e outros americanos com grandes fortunas que oferecem serviços de luxo a troco de pagamentos anuais que podem rondar os 20 mil dólares (cerca de 16,7 mil euros) estão a relatar uma enorme pressão para conseguirem vacinas para os seus clientes, com telefonemas diários de assistentes pessoais.

“Se eu doar 25 mil dólares, acha que isso ajuda?”, perguntou um cliente a um dos médicos na Califórnia, conta o Los Angeles Times (o médico disse que não). Em Nova Iorque, o médico de celebridades Edward Goldberg diz estar grato pela enorme penalização prevista para quem der vacinas fora da lista de prioridades, que inclui a perda da licença. “Assim tenho o que responder aos clientes” perante a insistência, declarou ao New York Times.  

No Brasil, um grupo de empresários tentou fazer uma compra privada, argumentando que usaria metade para os seus funcionários e doaria o restante ao sistema de saúde pública. A iniciativa gerou polémica até dentro da classe e, segundo a imprensa brasileira, as farmacêuticas não aprovaram a venda, mesmo tendo os empresários oferecido cinco vezes mais por dose do que o preço cobrado ao Governo brasileiro.

Algumas tentativas deverão, no entanto, explorar zonas cinzentas: exagerar uma fragilidade para subir na categoria do risco, ou ser definido como trabalhador essencial de uma empresa – o que muitos antecipam que aconteça com executivos de Silicon Valley.

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