“Trezentos mortos por dia envergonham qualquer governante”, diz ex-ministro Adalberto Campos Fernandes

Ex-ministros da Saúde socialistas criticam a gestão da pandemia que está a ser feita pelo Governo. Pedem uma comunicação mais eficaz e com menos ruído.

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Antigo ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes Nuno Ferreira Santos

Três antigos ministros da Saúde socialistas criticaram esta quinta-feira as respostas do Governo no combate à pandemia, apontando as falhas de comunicação, que dizem ter contribuído para gerar medo e confusão entre as pessoas, e a desresponsabilização de quem lidera.

Maria de Belém Roseira, ministra da Saúde do primeiro governo de António Guterres (1995-1999), fez uma analogia entre o combate à covid-19 e uma orquestra: a “maior falha” do maestro, é dizer que a “responsabilidade” é dos outros. “Quem rege a orquestra é que tem de garantir que todos entram no seu momento-chave”, disse a antiga ministra, continuando a comparação. “A pandemia não vai acabar tão cedo. Podemos olhar para ela como uma orquestra, e aquilo que mais me dói é que, mais uma vez, desafinamos”, lamentou Maria de Belém, que interveio no debate Covid 19 em 2021: O Dia Seguinte, integrado no ciclo de eventos preparatórios para a 2.ª Cimeira das Regiões de Saúde, previsto para Março na Madeira.

Antes, Adalberto Campos Fernandes, ministro da Saúde dos primeiros três anos do anterior executivo de António Costa, já tinha falado de um “carro desgovernado” para se referir à situação pandémica no país. “É preciso dizer que a luta contra a pandemia é um jogo colectivo em que o treinador não se pode eximir das responsabilidades, os jogadores também não, e o público também não”, defendeu, endurecendo o discurso: “Trezentos mortos por dia envergonham qualquer governante. Envergonha-me a mim, enquanto cidadão”.

Adalberto Campos Fernandes, que foi substituído a meio do mandato do anterior governo pela actual ministra Marta Temido, estende as críticas a todos os quadrantes da sociedade – “colectivamente, falhamos todos” –, mas não poupa os que têm responsabilidades de enfrentar e gerir a crise. “Há uma coisa que se chama decência moral. O país precisa de homens e mulheres de coragem, não de ‘calimeros'”, reforçou, dizendo que o presidente do conselho de administração do Hospital de Santa Maria, já devia ter vindo a público pedir desculpa às pessoas pela fila de ambulâncias que se verificou à porta das urgências, e que o responsável pelo INEM também já deveria ter esclarecido, sobre se foram vacinados ou não pessoal administrativo.

O “circo” do Infarmed

Mais contida, neste evento online que contou também com o secretário regional da Saúde e Protecção Civil da Madeira, Pedro Ramos, esteve Ana Jorge, ministra da Saúde dos governos de José Sócrates. Mesmo assim, não deixou de se mostrar contra o modelo das reuniões do Infarmed. “Há situações que podem ser discutidas entre profissionais de saúde, mas aquilo que depois se põe para o grande público, não pode ser a discussão. Tem de ser os consensos”, explicou, vincando que não se trata de “vedar a informação” às pessoas, mas sim de evitar confusões, ansiedades e medos. “É o medo que depois leva a comportamentos ou tomadas de conduta desadequados, que foi aquilo que tem vindo a acontecer”, acrescentou, apontando o aligeirar de medidas no Natal, como “uma das razões” para o aumento das infecções pelo coronavírus.

Opinião partilhada por Adalberto Campos Fernandes, que considerou um “circo” as reuniões do Infarmed, embora estranhando que, quando a pandemia estava controlada no país, assistia-se a conferências de imprensa todos os dias, e agora, que a situação é grave, há excesso de silêncio, e por Maria de Belém. “As reuniões não servem o objectivo. Eu não preciso de ter A mais B, mais C, mais D, mais E... a dizer o que pensam. Eu preciso de juntar as pessoas todas numa mesa. Elas que façam uma síntese das suas convergências e das suas divergências, e que assentem nas mensagens que têm que dar a quem tem de decidir, porque assim não dá nada”, argumentou.

Pedro Ramos, que abriu o evento admitindo que algumas medidas que foram tomadas “tiveram resultados menos positivos”, algumas vezes devido à “chico-espertice” de algumas pessoas, que foram procurando formas de desrespeitar as orientações das autoridades de saúde, alertou para as consequências sociais e económicas que a pandemia trará. Oportunidade para um olhar sobre as presidenciais: a vitória de Marcelo Rebelo de Sousa e o crescimento de André Ventura e do Chega.

“Na presente crise que estamos a viver, começa a ser difícil encontrar um ponto de equilibro entre um discurso completamente redondo, e um discurso politicamente correcto em excesso”, notou Adalberto Campos Fernandes, que foi um dos apoiantes de Marcelo, considerando que, mesmo assim, os portugueses escolheram pela moderação, e não pela aventura.

Maria de Belém, que foi candidata a Belém em 2016, concorda, destacando a primeira intervenção de Marcelo após as eleições – não foi um discurso de vitória, mas de compromisso e empenho na luta contra a pandemia –, mas alerta que a votação de Ventura, principalmente no interior do país, pede uma reflexão profunda. “É uma rejeição enorme. As pessoas no interior sentem-se completamente abandonadas.”

Sobre medidas concretas para o combate à pandemia, Adalberto Campos Fernandes defende um reforço nos rastreadores (existem 700, e o país precisa de 10 mil), Maria de Belém acrescenta o recurso a unidades hoteleiras para assegurar o isolamento de quem não tem condições de habitabilidade, e assim actuar sobre as cadeias de transmissão, e Ana Jorge olha para o futuro. Vai ser necessário, perspectiva, uma reformulação profunda do Serviço Nacional de Saúde, que, concordam os antigos ministros, dificilmente vai sobreviver incólume a esta crise.

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