Técnicos dos centros de emergência de apoio a sem-abrigo denunciam precariedade

Técnicos dos centros de acolhimento de emergência para pessoas em situação de sem-abrigo foram dispensados ou viram baixar os seus salários quando mudou a gestão destes espaços municipais.

Foto
O centro de acolhimento de emergência montado no Pavilhão do Casal Vistoso no final de Abril Nuno Ferreira Santos/Arquivo

A gestão dos quatro centros de acolhimento de emergência para pessoas em situação de sem-abrigo mudou no início no ano e, com isso, grande parte dos técnicos que lá trabalhavam foram dispensados, apesar de o seu posto de trabalho não ter sido extinto. Quem ficou, queixa-se de ter agora um salário mais baixo para executar as mesmas funções. O relato foi feito por duas técnicas, agora desempregadas, na reunião de câmara desta quarta-feira.

Quando a pandemia de covid-19 começou a atacar o país em Março do ano passado, a Câmara de Lisboa criou um espaço para acolher quem não tinha tecto ou um local para se resguardar do vírus. Começou por adaptar o Pavilhão Desportivo do Casal Vistoso, no Areeiro, a centro de acolhimento de emergência e a procura começou a ser tal que foi necessário alargar esta resposta. Foram então abertos mais três centros e, com isso, surgiu a necessidade de ter técnicos especializados na área das ciências sociais — psicólogos, sociólogos, assistentes sociais — a trabalhar nessas respostas. 

Assim, a Câmara de Lisboa fez um protocolo com o ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa para a selecção e contratação de recursos humanos qualificados para estes centros. No final do ano passado, o ISCTE decidiu pôr fim a este contrato com o município. Ao PÚBLICO, o ISCTE explica que a sua participação “decorreu na fase de arranque do programa, no quadro de uma resposta rápida a uma situação de emergência e com um horizonte temporário limitado”. “Os contratos, inicialmente previstos para durarem três meses, foram prolongados mais que uma vez, tendo cessado no final de Dezembro”, nota a instituição de ensino superior. 

“Apesar de este tipo de acções não se enquadrarem na missão do ISCTE, o programa ofereceu a cerca de uma centena de estudantes a possibilidade de uma experiência no terreno e um contacto com realidades que fazem parte dos planos de estudo da universidade”, diz ainda a instituição de ensino superior. 

Depois de o ISCTE ter anunciado a intenção de não renovar o protocolo com a autarquia, foi lançado um concurso para que a gestão dos centros passasse para associações que fazem trabalho na área. Assim, a partir de 1 de Janeiro, a Vitae passou a estar responsável pelos centros montados no Complexo Desportivo Municipal Casal Vistoso e na Casa dos Direitos Sociais, a Ares do Pinhal pelo centro montado na Pousada da Juventude do Parque das Nações e a AMI pela Casa do Lago. 

Foto

No entanto, dos 49 técnicos que estavam a trabalhar nos centros em Dezembro, ao abrigo deste protocolo, apenas uma pequena parte continuou a trabalhar nestes equipamentos de emergência sob a gestão das associações. E, em vários casos, com remunerações mais baixas para executar o mesmo tipo de funções no mesmo horário. A Câmara de Lisboa diz agora que está a dialogar com as associações para que os salários se mantenham, mas não garante novas contratações. 

O relato foi ouvido na reunião pública da Câmara de Lisboa desta quarta-feira pelas vozes de duas antigas técnicas superiores, que trabalharam na Pousada da Juventude de Lisboa. Henriqueta Sampaio e Gizela Almeida foram dispensadas no final do ano passado, apesar de os seus postos de trabalho não terem sido extintos. Estão desempregadas. Segundo disseram, o mesmo aconteceu a cerca de 75% dos técnicos que tinham sido contratados ao abrigo deste protocolo. 

“A nossa contratação foi feita através de uma ‘barriga de aluguer’, o ISCTE, e no nosso contrato havia uma cláusula, que previa [a sua continuidade] enquanto os centros de emergência existissem, facto que ainda se verifica, infelizmente”, disse Henriqueta Sampaio. Por estes centros, diz a autarquia, já passaram mais de 700 pessoas em situação de sem-abrigo

“Falta de transparência”

Segundo relatou, foi em Outubro do ano passado que a câmara informou que, a partir de Janeiro de 2021, os contratos seriam assinados com outras instituições, que estavam ainda por definir. Apesar de o contrato ter sido assinado com o ISCTE, esta instituição tratava apenas da parte “burocrática”. Era sempre com a câmara com quem contactavam, uma vez que os centros são da sua responsabilidade. 

“A expectativa criada era que haveria uma transferência de pelo menos 80% dos então 47 técnicos superiores dos quatro centros de emergência. Outros poderiam continuar como monitores. Mas, de qualquer modo, continuaríamos no projecto”, continuou Henriqueta, lamentando que o município não tenha acautelado a manutenção dos seus postos de trabalho. 

Segundo as contas das antigas técnicas, apenas continuaram nos centros 12 trabalhadores dos que já lá estava. Desses, “quase todos viram a sua categoria profissionais rebaixadas, com redução salarial, embora continuem a exercer as mesmas funções”. 

O que Gizela Almeida critica sobretudo é a “falta de transparência no processo de transferência da gestão dos centros de emergência”. “Sempre nos foi dito que os nossos trabalhos estavam garantidos”, notou, sublinhando que estiveram até aos últimos dias de Dezembro sem saberem se seriam ou não contactados pelas instituições que passariam a assumir a gestão dos espaços dali a dias. 

Além do que foi exposto pelas duas técnicas, o PÚBLICO tem recebido ao longo das últimas semanas mais relatos de situações idênticas nos outros centros. Mesmo quem continuou a trabalhar confirma a descida no salário em pelo menos um quarto para desempenhar as mesmas funções: passou de um salário mensal bruto de cerca de 1100 euros para 800, descendo da categoria de técnico superior para monitor. 

Foto

“Temos uma responsabilidade, senão jurídica, ética e moral”

Este assunto foi levantado pela vereadora eleita pelo PSD, Teresa Leal Coelho, numa reunião de câmara ainda no final do ano passado. “Temos uma responsabilidade, senão jurídica, ética e moral relativamente às pessoas que foram contratadas pelo ISCTE”, disse a social-democrata, já após ouvir o relato das duas técnicas. 

Também o vereador do PCP, João Ferreira, lembrou que a gestão dos centros de emergência deveria, desde o início, ter tido um enquadramento diferente. “Logo aí vimos que este expediente da ‘barriga de aluguer’ servia para garantir trabalhadores a baixo custo e expô-los a uma situação mais precária que agora está à vista”, disse. 

Na resposta às questões levantadas pelas técnicas e pelos vereadores da oposição, o vereador que tem o pelouro dos Direitos Sociais, Manuel Grilo, disse não ser possível “obrigar uma associação a contratar uma pessoa em concreto”. “Cada associação encetou os contactos que entendeu no sentido de reforçar as suas equipas e manter os equipamentos de emergência a funcionar correctamente”, disse o vereador. 

Tendo conhecimento que as instituições acabaram por recrutar apenas alguns trabalhadores para categorias inferiores, logo, com salários também mais baixos, diz estar a dialogar com as novas entidades gestoras. “Apercebo-nos de que haveria distinções salariais e diminuição dos vencimentos, que estariam a provocar algumas recusas na contratação. Estamos a trabalhar com as associações para que não haja alteração dos salários das pessoas contratadas do ISCTE agora com estas novas associações”, disse. 

Notícia actualizada às 11h06 de 29 de Janeiro: clarifica que a intervenção do ISCTE neste projecto teve sempre um “horizonte temporário limitado"

Sugerir correcção
Ler 2 comentários