Atrasos e dúvidas instalam confusão sobre vacinas na Europa

Comissão Europeia pressiona farmacêuticas para cumprirem os prazos de entrega definidos nos contratos de aquisição conjunta de vacinas. Nesta terça-feira, o processo da chegada das vacinas da AstraZeneca foi ainda ensombrado por dúvidas sobre a sua eficácia.

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Daniel Rocha

A empresa AstraZeneca anunciou na sexta-feira que não ia conseguir cumprir o acordo com a União Europeia, justificando que enfrentava problemas na produção das suas vacinas. A Comissão Europeia, que quer cumprir a meta de ter 70% da população adulta vacinada até ao fim do Verão, reagiu de imediato pressionando a farmacêutica. A esta pressão, que já começou há vários dias e que é dirigida a outros fabricantes que também anunciaram atrasos na entrega das doses prometidas, juntou-se ainda a sombra de dúvidas sobre uma limitada eficácia de apenas 8% da vacina da AstraZeneca na população acima dos 65 anos. A empresa já desmentiu esta alegação, mas não conseguiu evitar a polémica.

Os atrasos nas entregas da vacina da Pfizer já tinham lançado confusão no processo de negociação entre as farmacêuticas e a União Europeia (UE) para a reserva de vacinas a entregar a cada um dos 27 Estados-membros. E a pressão da Comissão Europeia começou de imediato, renovando e reforçando as preocupações com a transparência dos acordos com as empresas envolvidas no “negócio” das vacinas. Numa reunião que decorreu na última quinta-feira, Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, avisou: “Os compromissos que foram assumidos pelas empresas têm de ser respeitados.”

Um dia depois, a AstraZeneca, que desenvolveu a sua vacina com a Universidade de Oxford, avisou a UE de que, tal como a Pfizer, também não poderia cumprir os objectivos de fornecimento acordados até ao final de Março. A confusão instalou-se definitivamente e a pressão intensificou-se na Comissão Europeia e nos governos nacionais. No domingo, a Itália anunciou mesmo que tenciona processar a Pfizer e a AstraZeneca devido aos atrasos na entrega das vacinas contra a covid-19  – para garantir os fornecimentos e não para obter compensações. Nesta terça-feira, o problema na Itália ganhou também novos contornos com a notícia sobre o investimento do Governo italiano na produção interna de vacinas através de uma empresa que tem na sua administração o comissário do plano de vacinação naquele país.

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A aprovação e as suspeitas de “desvios"

Neste momento, só duas das oito vacinas compradas pela União Europeia foram autorizadas pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês), a da Pfizer e a da Moderna. A par da pressão dirigida às farmacêuticas, os chefes de Estado e Governo têm também exigido mais celeridade no processo de licenciamento. A vacina da AstraZeneca ainda espera a aprovação da EMA, que pode surgir esta sexta-feira na reunião que já está agendada.

Antes da possível aprovação da EMA, a empresa anunciou os problemas na produção que iriam causar atrasos nos prazos de entrega. Mas a justificação da empresa não convenceu a Comissão Europeia nem os Estados-membros e levantou a suspeita de que a AstraZeneca não iria conseguir cumprir o acordo com a União Europeia porque poderia estar a “desviar” a sua produção para outros mercados, como Estados Unidos da América, Reino Unido e Israel.

Como se essa suspeita não bastasse, o jornal alemão Handelsblatt publicou nesta segunda-feira uma notícia que veio ensombrar mais ainda a negociação da AstraZeneca com a União Europeia. Citando fontes governamentais, a notícia relata que a vacina da AstraZeneca não será muito eficaz para pessoas com mais de 65 anos, o que poria em causa a sua adequação em programas de vacinação em massa.

A empresa desmentiu publicamente esta acusação sobre a limitada eficácia de apenas 8% na população acima dos 65 anos, afirmando que “os relatórios são totalmente falsos”. E enquanto a mancha desta dúvida se alastra, temendo-se que possa atrasar o processo de aprovação da vacina da EMA, o ministro da Saúde alemão, Jens Spahn, também já reagiu afirmando que quer esperar pela avaliação dos resultados dos estudos sobre a vacina.

Onde param as vacinas prometidas à Europa?

Têm sido golpes atrás de golpes para a AstraZeneca, em particular, e também para o processo de produção de vacinas na Europa, em geral. Os representantes do comité de acompanhamento da União Europeia reuniram-se duas vezes nesta segunda-feira com a empresa farmacêutica. No final, a comissária da Saúde, Stella Kyriakides, referia na sua conta oficial do Twitter que as discussões com a empresa resultaram em “insatisfação com a falta de clareza e explicações insuficientes”.

“Os Estados-membros da UE estão unidos: os fabricantes de vacinas têm responsabilidades sociais e contratuais que precisam de manter. Com os nossos Estados-membros, solicitámos à AstraZeneca um planeamento detalhado das entregas de vacinas e quando é que a distribuição terá lugar nos Estados-membros”, escreveu. A Comissão vai retomar o diálogo com a farmacêutica nesta quarta-feira. Até lá, espera ter “respostas mais satisfatórias” para a pergunta essencial: porque é que a empresa não pode satisfazer o contrato que foi assinado, o que aconteceu às doses que foram compradas pelos países da UE?

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“Os Estados-membros da UE estão unidos: os fabricantes de vacinas têm responsabilidades sociais e contratuais que precisam de manter". afirmou a comissária da Saúde, Stella Kyriakides REUTERS/Yves Herman/Pool

“A nossa única preocupação é obter as vacinas que foram contratadas. As empresas onde a UE investiu e com as quais fechou contratos têm de cumprir as suas obrigações e entregar as doses previstas”, referiu Eric Mamer, o porta-voz da presidente da Comissão Europeia.

Enquanto espera pelas respostas da empresa, a Comissão Europeia também já anunciou que pretende avançar com um mecanismo de monitorização das exportações das vacinas produzidas no território europeu. Esta terça-feira, a Comissão Europeia ainda não sabia explicar como funcionará “na prática” o novo mecanismo de transparência anunciado na véspera pela comissária da Saúde, Stella Kyriakides. Segundo um porta-voz do executivo comunitário, os detalhes técnicos estão a ser desenvolvidos, e a proposta ainda está a ser preparada. Não será, vincou aquele responsável, um sistema de autorização de exportações, que permita aos Estados-membros restringir ou bloquear a exportação de vacinas para mercados externos à UE.

“A palavra-chave deste mecanismo é transparência”, apontou Eric Mamer, insistindo que o único objectivo de Bruxelas é assegurar que as autoridades tenham informação prévia sobre as exportações das empresas sediadas na UE que estão a vender vacinas cujo desenvolvimento e produção foi financiado pelo orçamento comunitário. “Temos de saber para onde vão as vacinas que são produzidas na Europa”, afirmou.

Esta é mais uma forma de pressionar as empresas que têm vindo a informar de “falhas” na capacidade de produção ou “problemas” de distribuição de vacinas no calendário acertado, num contexto de desabastecimento em território europeu. “Vemos que há doses de vacinas que são produzidas na Europa que estão a ser entregues noutras regiões”, assinalou o porta-voz da Comissão Europeia, considerando legítimas as dúvidas de Bruxelas e as acções previstas para assegurar que os direitos contratuais e o avultado investimento feito pelos Estados-membros têm o retorno previsto.

Por exemplo, o contrato de aquisição conjunta com a AstraZeneca foi fechado em Agosto e as encomendas dos Estados-membros foram colocadas em Outubro. “Naturalmente esperamos que as entregas comecem a ser feitas imediatamente após a autorização de mercado da Agência Europeia do Medicamento”, disse Eric Mamer.

Em Portugal, a ministra da Saúde anunciou nesta segunda-feira a chegada de mais 99.450 doses da vacina da Pfizer. Marta Temido revelou também, em conferência de imprensa, que cerca de 255.700 pessoas já foram inoculadas com uma das duas vacinas contra a covid-19 que estão a chegar ao país (Pfizer e Moderna). As pessoas com mais de 50 anos e com doenças associadas começam a ser vacinadas na próxima semana, assim como profissionais considerados essenciais e membros de órgãos de soberania.

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