A ouvinte desfigurada

Só sou notada quando há alguma confissão a fazer e nem mesmo nessa altura me vêem, sou apenas a parede do confessionário de que precisam. Ninguém imagina que sou uma mulher desfigurada, mas sou. Penso que deixariam de me contar os seus segredos se soubessem do meu.

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Molly Belle/Unsplash

Sou uma mulher desfigurada, mas ninguém sabe. Trabalho há vários anos numa empresa de importação e exportação de alimentos para animais domésticos. Também eu, como um animal domesticado, assinto a tudo o que me dizem em troca de um biscoito chamado atenção. Oiço de tudo um pouco, desde episódios familiares sem importância a momentos mais traumáticos. Limito-me a sorrir e a dizer “compreendo". 

Apesar da parca comunicação verbal que me liga aos meus colegas, ninguém na empresa pode dizer que eu sou desagradável ou misteriosa. Omeus modos contidos de ouvinte são até bastante empáticos. As pessoas confiam em mim. As pessoas entregam os segredos a quem se dispõe a ouvir sem revelar sinais de impaciência ou de censura, e sem os sobrecarregar com alguma informação em troca.

À maioria das pessoas falantes, tanto lhes faz que o ouvinte queira ou não escutar, desde que se preste a ser um receptáculo passivo em que se despejem novidadesrecordações ou fantasias. Já se sabe que é um dos maiores desejos das pessoas, a par de se ser amado – ser-se escutado. Sempre cumpri o meu serviço de ouvinte excepcionalmente bem. Não raras vezes, sou a primeira a entrar no escritório e a escutar algum colega que se apresenta perturbado logo pela manhã. Acrescente-se então, ao meu carácter de boa ouvinte, o meu perfil matutino. 

Atenção que não me estou a gabar. Entro no escritório antes do horário que me compete porque fico inibida se já estiverem outras pessoas no escritório e eu tiver de atravessar o corredor até à minha secretária, sentindo os olhares sobre mim. Não se pense que ganho mais alguma coisa por chegar mais cedo do que os outros. E isso não tem importância para mim, a verdade é que nunca me foi caro acordar antes de o Sol lamber as cortinas do quarto, nem chegar a casa bastante depois de o Sol se pôr. 

Sei que cumpro os meus ofícios de funcionária e de ouvinte especialmente bem, e isso deixa-me orgulhosa. Gosto de ser eu a abrir e fechar a porta descritório. Também hoje entrei discretamente na empresa, como é meu apanágio, alguns minutos antes do horário que me cabe. Avancei pelo espaço e dirigi-me à minha secretária. Pousei a pequena mala de ombro no tampo da mesa, despi o casaco pesado de fazenda, pendurei-o nas costas da cadeira e sentei-me, silenciosa como sempreà secretária. Liguei o computador e talvez tenha tamborilado os dedos sobre a mesa (gosto do som que fazem), enquanto esperava que o aparelho ficasse apto para exercer funções. Estava, portanto, perante um normalíssimo iniciar de dia de trabalho.

Levantei-me para ir buscar uma chávena de café, dirigindo-me para a máquina que se encontra no corredor de acesso ao gabinete da chefia. Foi então que abanei ligeiramente a cabeça para desviar o cabelo da fronte e, sem que eu previsse tal acontecimento, saltou-me num disparo um dos olhos da órbita. Sem ver nitidamente, curvei-me – a situação era aflitiva, não podem imaginar! – e com apenas quatro dedos da mão esquerda, sem usar o dedo mindinho, consegui resgatar o pobre olho que estava junto ao meu sapatoGuardei o meu olho direito, redondo e reluzente como um abafador de berlindes, bem fechado dentro do meu punho. Se não fosse ter esta prótese, toda a gente saberia que sou uma mulher deformadaDirigi-me, então, ao quarto de banho o mais rápido que pude, girando o trinco executando o frágil blindar da porta. 

Ninguém reparou em mim, como sempre aliás. Só sou notada quando há alguma confissão a fazer e nem mesmo nessa altura me vêem, sou apenas a parede do confessionário de que precisamNinguém imagina que sou uma mulher desfigurada, mas sou. Penso que deixariam de me contar os seus segredos se soubessem do meu.

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