Doentes dos lares ficam “retidos” no hospital se, ao fim de dez dias, tiverem resultado positivo

Médicos criticam norma da DGS que obriga doentes sem critérios de internamento a permanecer no hospital até 20 dias se, ao fim de dez dias de evolução clínica favorável, o resultado no teste à covid-19 der positivo. Regra só se aplica a doentes que vão para lares e cuidados continuados ou paliativos e similares. DGS diz que norma já está a ser revista.

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Há doentes que têm de aguardar dez dias para terem alta hospitalar se o teste der resultado positivo Miguel Manso (arquivo)

O congestionamento dos hospitais está a ser agravado por uma norma da Direcção-Geral da Saúde (DGS) que obriga a que os doentes internados nas enfermarias dedicadas à covid-19 e que vão ser reencaminhados para lares ou estruturas de cuidados paliativos ou integrados não possam ter alta se, ao fim de dez dias de evolução clínica favorável, o teste continuar a dar resultado positivo. “Os critérios estão errados e são co-responsáveis pelo congestionamento dos hospitais, porque na prática obrigam a que o doente permaneça internado por mais dez dias, ocupando camas que são necessárias para outros doentes, quando a evidência científica já demonstrou que já não existe qualquer risco de contágio”, criticou ao PÚBLICO o médico José Manuel Silva, ex-bastonário da Ordem dos Médicos e coordenador de uma enfermaria para doentes com covid-19 no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC).

“Estes dez dias em que os doentes ficam retidos nos hospitais têm um efeito dramático porque bloqueiam a entrada dos novos doentes, que por isso congestionam as urgências ou não conseguem sair das ambulâncias ”, insiste o médico, para garantir: “Temos no CHUC dezenas de doentes que só estão à espera dos 20 dias para poderem ser transferidos.”

No Hospital Curry Cabral, em Lisboa, o problema repete-se. “Essa norma da DGS impede uma saída mais célere de doentes que já não reúnem critérios de internamento”, adiantou Fernando Maltez, director do serviço de infecciologia daquele hospital. Para este médico, a norma ficou desactualizada “a partir do momento em que se constatou que, a partir do oitavo dia, a probabilidade de o doente continuar contagioso é muito baixa”.

Actualizada pela última vez a 14 de Outubro, a Norma 004/2020 da DGS define que, tal como acontece com os profissionais de saúde, os doentes internados que vão ser admitidos em lares, unidades de cuidados continuados ou paliativos, bem como aqueles que serão transferidos para áreas não dedicadas a doentes com covid-19, não poderão sair se, ao fim de três dias sem febre e de dez dias de evolução clínica favorável, continuarem a ter um resultado positivo. Ora, como sublinha o intensivista Carlos Meneses de Oliveira, “os testes PCR são altamente sensíveis e detectam os restos do RNA do vírus nas vias aéreas durante muito tempo”, levando a que o resultado seja “um falso positivo”, nalguns casos por muito tempo depois da infecção.

A mesma norma da DGS define que, decorridos mais dez dias, aqueles doentes poderão sair do hospital sem necessidade de submissão a novo teste. Mas, e segundo o responsável do Curry Cabral, “há lares que, mesmo decorridos os 20 dias, e apesar de isso não estar contemplado na norma, continuam a exigir um novo teste, sem o qual não aceitam receber a pessoa”.

Universo restrito de doentes

Ao PÚBLICO, a DGS enfatiza que a obrigatoriedade de um resultado negativo ao fim do décimo dia de evolução clínica favorável a este universo restrito de doentes “está em linha com a posição do ECDC [Centro Europeu de Controlo de Doenças], que recomenda uma cautela particular em locais de elevado risco de contágio e com pessoas com elevada vulnerabilidade para a covid-19, como é o caso das estruturas residenciais para idosos”. Ainda assim, e consideradas “as novas evidências científicas e a experiência adquirida até à data”, a DGS adianta que a norma está a ser actualizada.

As “reinterpretações” que vêm sendo feitas dessa mesma norma têm levantado outras dificuldades aos hospitais, segundo o intensivista Carlos Meneses, nomeadamente impedindo a mobilidade de doentes dos cuidados intensivos para as enfermarias, “Um doente que está a fazer ventilação mecânica não invasiva não pode ser ‘desmobilizado’ dos cuidados intensivos para uma enfermaria a não ser que tenha dois testes com resultado negativo com um intervalo de 24 horas”, explica, adiantando que, por causa disso e também pelo entupimento das enfermarias dedicadas à covid-19, há doentes que permanecem nos cuidados intensivos mais tempo do que o que seria necessário. “Os doentes que estejam a fazer terapêutica geradora de aerossóis também não podem ir para uma enfermaria normal, mesmo sem que haja já do nosso lado qualquer suspeita de infecção activa”, acrescenta.

Indignado por, numa altura em que os hospitais estão sob fortíssima pressão, haver doentes “que estão estacionados à espera de uma ordem burocrática”, o especialista lembra que “os hospitais servem para tratar doentes e não para acumular pessoas com testes positivos”. E considerando que não se pode continuar a “empanturrar os hospitais por motivos epidemiológicos e não clínicos”, Carlos Meneses pede a quem “está a interpretar a ciência médica para informar o SNS um acompanhamento mais atempado da evolução do conhecimento científico sobre esta doença”.

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