A nuvem negra que não passa

Os bebés da família estão a crescer, mudam muito em poucos meses. O tempo passa. A árvore de Natal foi desfeita, o hotel continua fechado. E a minha avó, de 96 anos, continua a dizer que nunca viu nada assim.

Queria escrever sobre outros temas, os meus preferidos serão sempre as miudezas do quotidiano, o que é pequeno, as entrelinhas em vez das linhas, os intervalos, fingir que leio um livro no comboio, quando na verdade estou a espreitar outras vidas em volta. Mas agora, paradoxalmente, tudo o que é pequeno transformou-se em grande, já não há miudezas, os pequenos gestos ganham sombras gigantes.

Ponho-me a ver uma série à noite, de repente dou comigo a reparar nas cenas dos concertos, em clubes, espaços fechados com música alta, festa, pessoas coladas umas às outras a dançar. Não consigo deixar de reparar naquilo, parece-me outro mundo. Todos tão juntos, tão perto. Nem precisa de ser algo tão estonteante como um concerto. No outro dia dei comigo a olhar para uma cena que se passava numa repartição qualquer, a proximidade entre as pessoas, todas sentadas umas ao lado das outras.

Vou fumar um cigarro à janela. Vejo que já desfizeram a árvore de Natal do hotel em frente à nossa casa. Era uma imagem peculiar. A árvore de Natal toda enfeitada, as luzes a piscarem, num hotel fechado há já não sei quanto tempo, perdi a conta. Era como se a árvore com as luzes amarelas mostrasse que continua vivo, um coração a piscar no meio da escuridão de um hotel fechado. A árvore já não está lá, o hotel continua fechado.

Volto à série e penso como vai ser excitante o dia em que pudermos voltar a estar todos colados uns aos outros. Mas não consigo concentrar-me nessa sensação de futuro, há uma nuvem negra a pairar sobre os pensamentos que me detém, fico entre a estranheza e a expectativa, não consigo avançar na imaginação. Não tenho queda para pensamentos positivos, não consigo ver nada de positivo nisto tudo. Minto. Há uns tempos, vi uma imagem bonita numa reportagem televisiva: alunos em Itália a terem aulas numa praia. A forma como enterravam os pés na areia, o som das ondas, era bonito, sim. Mas já passou. Agora, com este frio, já não há nada de positivo em pessoas a tiritar, com janelas abertas para afugentar o bicho.

Foto
Towhid Shamsi/Unsplash

Decidi fazer exercício em casa, dizem que os pensamentos positivos vêm com a ginástica. Descarreguei uma aplicação no telemóvel e, de facto, resulta: durante alguns minutos é uma barrigada de riso por cá. O meu namorado e a nossa filha divertem-se a verem-me abrir e fechar os braços, a saltar, a dobrar as pernas. A parte preferida deles é quando faço uma espécie de flexões em cima da cama, porque no chão doem-me os joelhos. A outra forma de exercício que praticamos é andarmos à procura do carro no bairro. Como pegamos tão poucas vezes nele, esquecemo-nos onde o deixámos. Já chegámos a caminhar cerca de meia hora a pé, rua acima, rua abaixo, à procura. Pensar, no meio daquela irritação, que aquela busca acaba por ser um momento de exercício, no meio do sedentarismo do confinamento, é o auge de pensamento positivo que consigo ter.

Que pena que desfizeram a árvore de Natal do hotel. Agora, quando vou à janela fumar um cigarro, apercebo-me mais da passagem do tempo, já passaram tantos meses, quase um ano disto. Mas, se tivessem deixado a árvore feita, o hotel pareceria esquecido, assim vamos tendo sinais de que continua vivo. Pequenos gestos, sombras de gigante.

Nasceram bebés na minha família. Nasceram nos últimos meses do ano. Houve concílios, opiniões. A minha avó tem 96 anos. Decisões, quem pode e quem não pode entrar em casa, quem visita, quem fica de fora. Só entra este e aquele. Mas o que importa aconteceu, e eu acho que não há certo nem errado. Cheios de máscaras e de cuidados, mas, sim, aconteceu: ela pegou nos dois últimos bisnetos ao colo, breve e tensamente. Nasceram dois rapazes, na minha família é só mulheres, ela estava alegre com a novidade. E vê-la feliz, sim, também foi bonito. Os bebés estão a crescer, mudam muito em poucos meses. O tempo passa. A árvore de Natal foi desfeita, o hotel continua fechado. E a minha avó, de 96 anos, continua a dizer que nunca viu nada assim.

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