Manuel Carmo Gomes: “São urgentes medidas restritivas, houvesse variante ou não”

O epidemiologista perspectiva um cenário de grande pressão nos hospitais devido ao grande acréscimo de novos casos. Para o professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, a gravidade da situação deve levar ao encerramento das escolas, deixando de fora as crianças abaixo dos 12 anos.

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Manuel Carmo Gomes Rui Gaudêncio

Manuel Carmo Gomes foi um dos especialistas ouvidos esta terça-feira na reunião que se realizou no Infarmed. Projecta um cenário de grande pressão nos hospitais, devido ao crescimento exponencial de novos casos desde o Natal, mesmo que se tomem medidas restritivas no imediato. O professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa considera que perante a gravidade da situação actual, as escolas devem fechar, mas deixando em aulas presenciais as crianças com menos dez a 12 anos. Já quanto à estratégia de vacinação contra a covid-19, diz que está a correr bem e explica as desvantagens que vê numa estratégia que opte antes por vacinar todas as pessoas acima dos 80 anos, independentemente de terem doenças ou do local onde estão.

O que poderá ter estado na origem de um salto tão grande de novos casos de infecção a seguir ao Natal?
Constatamos que existe uma dissonância entre entre o número de novos casos que surgiram precisamente naquela semana de Natal – entre 24 e 29 de Dezembro – e o número de testes. Essa dissonância, no nosso entender, libertou aproximadamente um conjunto de pessoas na ordem das 5000, que tinham a doença e não foram testadas naquela altura. Depois, se o R for igual a 1, essas 5000 pessoas transmitem a outras 5000 e assim por diante. Tem a agravante que, por essa altura, muitas pessoas estavam fora da sua residência habitual e movimentaram-se e, portanto, há uma propagação que penso que explica esta subida.

Segundo a apresentação do investigador João Paulo Gomes, do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa), ainda não se percebe uma preponderância da variante do Reino Unido que possa justificar um acréscimo de casos.
Em Portugal ainda não temos evidência de que ela esteja a causar isto. Aquilo que se passou no Natal, no meu entender, é a causa do que aqui aconteceu. Agora, que a variante [identificada no Reino Unido] se vai espalhar em Portugal, tenho muito poucas dúvidas. Temos relações com o Reino Unido e com o resto da Europa e a variante já foi encontrada no resto da Europa. É uma questão de tempo. Não sei se não surgirá outra, porque temos a da África do Sul e, nas notícias, já ouvi falar de uma nova que apareceu do Japão vinda do Brasil. Mas tudo isto é natural.

Porquê?
A partir do momento em que começa a haver uma fracção crescente da população que já está protegida, ou porque teve o vírus ou mais tarde porque apanha a vacina, o vírus começa a optimizar a sua evolução no sentido de aumentar a sua transmissão.

É o que acontece com estas variantes?
Exacto. Pelo menos com a do Reino Unido, que está estudada e não há dúvida que é mais transmissível. Da perspectiva do vírus, o que tem interesse é que ele não nos cause doença grave que nos faça auto-isolar, e até morrer depressa, para ele ter tempo de se propagar. Um vírus “inteligente” é um vírus que quando começa a ter dificuldade em propagar-se começa a causar doença menos grave e as pessoas estão mais tempo sem sintomas a propagar [a doença]. Neste do Reino Unido não há evidência que põe as pessoas mais tempo sem sintomas, mas há evidência que causa maior carga viral no trato respiratório superior.

Significa que se torna ainda mais urgente a aplicação de medidas restritivas e um confinamento próximo ao que tivemos em Março e Abril?
Para mim é urgente tomá-las dado o elevado nível de incidência em que estamos, houvesse variante ou não. Apresentei uma projecção do número de casos que, se não fizemos nada, podemos vir a ter. Ultrapassam os 18 mil, 19 mil, 20 mil por dia. É crescimento exponencial. Acho que é absolutamente urgente fazemos qualquer coisa. Quanto mais tempo deixarmos a incidência subir muito, mais tempo levamos a fazê-la descer.

Isto vai reflectir-se em internamentos em enfermaria, em unidades de cuidados intensivos (UCI) e em mortalidade. Quais são as estimativas?
Em UCI, estou convencido que já não evitamos que se ultrapassem as 700 camas ocupadas. Acho que vamos para cima disso. Nos óbitos, fizemos uma projecção de 150 a 160 óbitos em nove a dez dias.

Nos cuidados intensivos, as 700 camas que fala serão...
... para o fim do mês ou antes até. É a direcção em que estamos a ir. No caso das 700 camas, vamos ultrapassá-las se não fizermos nada, de certeza. Mesmo que façamos qualquer coisa, já vejo com dificuldade que evitemos isso. Isto é uma onda que tem uma inércia. Mesmo que fechássemos o país totalmente amanhã, isto continua com a vaga que vem detrás.

As escolas devem ser ou não fechadas? E na totalidade ou não apenas em alguns anos escolares?
Penso que a situação é tão preocupante que estar a discutir pormenores como se é só o 11.º e o 12.º ou não, são académicos. A situação é tão grave que acho que devemos fazer todo o possível para travar isto o mais depressa possível e, depois, poderíamos reabrir gradualmente. Mas, no cenário que prevemos, vamos levar muitas semanas até conseguirmos vir para níveis geríveis do ponto de vista hospitalar.

Para valores de antes de Novembro?
Para níveis nas UCI abaixo das 500, idealmente abaixo das 300 camas [ocupadas]. Quanto muito nas 300. Acho que isso seria o desejável.

Na sua opinião, deveriam fechar as escolas na totalidade.
Deixaria em aberto as crianças mais pequenas porque existem evidências para isso. Existem mecanismos biológicos que já começamos a entender, existe evidência que elas não transmitem tanto entre si e aos adultos como a partir da adolescência e os adultos. Poria as crianças fora disto.

Crianças até aos dez anos?
Sim, dez, 12 anos. As crianças em casa são um problema grave para os pais também. Os pais estão em teletrabalho e têm de gerir a sua vida a partir de casa numa situação de confinamento, penso que beneficiam se as crianças estiverem na escola. Mas não sou a pessoa ideal para avaliar isso.

Deve haver alguma alteração da estratégia da vacinação contra a covid-19?
Penso que não. As coisas estão a correr bem, estamos absolutamente condicionados pela chegada das vacinas. Mas relativamente ao argumento que deveríamos priorizar os maiores de 80 anos, independentemente de comorbilidades e de onde estão, expliquei numa das respostas a uma pergunta que um deputado fez, os problemas dessa estratégia. Temos aproximadamente 400 mil idosos que não estão em instituições. Estão em casa sozinhos ou partilham a casa com outro idoso. Estas 400 mil pessoas estão espalhadas pelo país. Destas pessoas, pergunto qual é a percentagem que, se se abrir um centro de vacinação, vão ao posto de vacinação. Não sei qual é, mas suspeito que há uma grande de parte deles que não irão porque estão acamados ou têm receio.

Temos de ver as vantagens e desvantagens e estou a apresentar as desvantagens dessa estratégia. Temos uma vacina que requer menos 80 graus, quando se abre dura pouco tempo a oito graus e não podemos vacinar uma pessoa aqui e outra ali. Temos de ter grupos de cinco ou seis pessoas para não desperdiçar. Suponha que tem 200 mil idosos espalhados pelo país a viver sozinhos ou com outros idosos, como resolve isto? Resolve. Mas quanto tempo leva? Tenho ouvido pessoas a apresentar esta estratégia como se fosse fácil e não é nada. Tem imensos problemas. E entretanto os profissionais de saúde ficam à espera e os outros que têm doenças. Normalmente a maioria das pessoas que morre são idosos ou não, mas têm outras comorbilidades e essas estão priorizadas na primeira fase.

Estou aberto a debater qualquer outra estratégia desde que as pessoas estejam realmente de espírito aberto de reconhecer que todas as estratégias têm desvantagens e ver quais têm menos desvantagens.

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