A ideologia e o género não-binário

É mais fácil ter medo e afastar o que não compreendemos do que aprender a respeitar individualidades muito distantes das nossas e tentar acompanhar novas investigações, ensaios e estudos científicos.

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Encontramo-nos, mais uma vez, numa fase conturbada para o activismo e para as pessoas LGBTQ+. Após alguns anos de existência mais ou menos tranquila, foi-nos posto na testa um alvo e hoje vemos quem nós somos e o que defendemos atacado violentamente na praça pública da extrema-direita, devido a um termo cunhado no âmago da intolerância e do medo: a “ideologia de género”. Com ele, vemos os nossos esforços do passado tornarem-se fúteis à medida que a opinião pública vai dando passos atrás.

Mas o que é este monstro? De onde veio e como poderemos derrotar o ódio que este simples termo suscita? Creio que a direita e a esquerda têm um inimigo em comum. Enquanto a direita odeia o termo devido ao que para eles representa – a queda das directivas heteronormativas do que julgam dever ser a sociedade –, a esquerda reconhece nele confusão e intolerância, um termo sem sentido nem definição que nos distrai do que é realmente importante: os estudos de género, que são ciência e não ideologia. Infelizmente, nesta era da pós-verdade, é fácil e comum na extrema-direita ver-se dúvida e discussão de factos científicos e é isso que se verifica com a “ideologia de género”: desinformação e retrocesso de uma sociedade cada vez mais desfasada das novas descobertas científicas. Já se sabe há mais de 50 anos que nem o género nem o sexo são binários, mas estamos muito longe de aceitar isso como sociedade.

O termo “ideologia de género” é, assim, nada mais, nada menos do que uma arma da extrema-direita para criar medo e confusão. É um espantalho que em si concentra todas as lutas da esquerda progressista por um mundo mais tolerante à diversidade de identidade de género, expressão de género e de sexualidade que se verificam naturalmente. É mais fácil ter medo e afastar o que não compreendemos do que aprender a respeitar individualidades muito distantes das nossas e tentar acompanhar novas investigações, ensaios e estudos científicos. Cria-se então este inimigo fantasma que incita a sociedade a voltar atrás, ao invés de dar passos em frente.

Este medo dirigido à comunidade LGBTQ+ não é um medo das pessoas LGBTQ+ em si, mas da perda do poder hegemónico que os que não fazem parte da comunidade sempre tiveram. A heterossexualidade obrigatória e a binariedade do género, pilares da cultura ocidental e tidos como certos, caem por terra face à existência de outras sexualidades e experiências e expressões de género que desafiam essas normativas, e esta perda de poder cria resistência. Cada vez mais, a comunidade LGBTQ+ liberta-se das suas opressões históricas e ocupa espaços que antes pertenciam a pessoas cisgénero heterossexuais, e isto resulta no descontentamento de pessoas que vêem o seu poder cultural a lentamente diminuir.

Verifica-se a falta de um lugar comum no qual possa haver discussão livre com intuito de educar, o que é acentuado pelas bolhas de informação constituídas pelas nossas vivências nas redes sociais e as pessoas com quem nos escolhemos dar. Creio que esta falta de dialéctica provocou que cheguemos ao ponto em que parámos de falar a mesma linguagem: verifica-se a existência de termos usados somente nas comunidades LGBTQ+ e aliados próximos, como a palavra “cisgénero” (que se refere a pessoas que se identificam com o género que lhes foi dado à nascença), e termos específicos às comunidades da extrema-direita, como a “ideologia de género” ou o “marxismo cultural”. É difícil ter uma discussão prolífera quando as palavras que usamos têm significados diferentes para cada pessoa, ou serem completamente desconhecidas por um dos lados. Outro ponto que fomenta a dificuldade de discussão é existirem factos que para um lado da conversa são óbvios e para o outro não, por exemplo a distinção entre identidade de género e sexualidade: as pessoas transgénero não são obrigatoriamente homossexuais ou bissexuais, muitas delas são heterossexuais.

É no desmantelamento deste termo que encontramos a sua origem e as estruturas que o apoiam: uma velha oligarquia cultural resistente à mínima mudança, assente na tradição cultural ocidental que continua a considerar um facto que o género e o sexo é binário e dado à nascença, a sexualidade é heterossexual e existe o dever de nos vestirmos de acordo com o nosso sexo, apesar da investigação científica e experiências pessoais que indicam o contrário. A única maneira de repelir este ódio e este termo/inimigo fantasma é com a educação, com a abertura de um debate civil que parta do respeito mútuo e viaje até à compreensão. É urgente acabarmos com a ascendente e deliberada ignorância da extrema-direita e impedir que esta ganhe espaços que nós, da comunidade LGBTQ+, lutámos tanto por ocupar. Só assim poderemos viver em segurança na certeza de que as nossas identidades serão sempre respeitadas.

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