E Trump ainda disse: “We love you, you are very special”

Alexander Hamilton sabia do risco de populistas tornarem-se tiranos. Por isso queria afastar da Casa Branca políticos com talento para “obséquios ao povo”.

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Busto do 12.º Presidente, Zachary Taylor, manchado de sangue no assalto ao Capitólio DR
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Em 1787, a Constituição norte-americana criou o primeiro sistema presidencial do mundo. Com medo do populismo, os “pais fundadores” inventaram um modelo de eleição indirecta através do colégio eleitoral.

Queriam pôr na Casa Branca um candidato que reflectisse “a vontade do povo”, mas desconfiavam da capacidade do povo para avaliar a aptidão dos candidatos. Alexander Hamilton, em particular, tinha medo que o Presidente fosse eleito com base na popularidade. Bastaria explorar “o medo e a ignorância” do povo para chegar à Casa Branca, seria “demasiado fácil”. “A História vai ensinar-nos — escreveu nos Federalist Papers — que a maior parte dos homens que destruíram as liberdades da república começaram a sua carreira fazendo uma corte obsequiosa ao povo; começando como demagogos e acabando como tiranos.”

A preocupação de Hamilton é um clássico da história das ideias políticas. Encontrei-a ao reler How Democracies Die — What History Reveals About the Future, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, enquanto via a CNN na quarta-feira à noite.

Para evitar que fosse “demasiado fácil” chegar à Casa Branca, Hamilton e os seus colegas decidiram que as eleições precisavam de um “filtro embutido” no sistema e inventaram o colégio eleitoral.

O sistema continua a ser difícil de digerir por muitos democratas, mas Hamilton estava confiante: se for escolhido por um colégio eleitoral, “raramente o cargo de Presidente cairá nas mãos do tipo de homem que não está dotado, em elevado grau, das qualificações necessárias”. Tradução: deve governar o mais qualificado e não o mais popular. Os homens “com talento para a intriga reles e para a arte da popularidade”, escreveu Hamilton, seriam postos de lado pelo “filtro embutido”.

O “raramente” calhou à nossa geração. É triste termos precisado de ter Donald Trump na Casa Branca para verificar, com os nossos olhos e ouvidos, no século XXI, como são sábias as palavras de Hamilton escritas no século XVIII. 

Trump perdeu as presidenciais e nunca saberemos o que teria feito o colégio eleitoral se as circunstâncias tivessem sido outras. É fácil imaginar que os republicanos se esforçassem para o manter no poder. Apesar de tudo. Foi o que fizeram até à inimaginável invasão do Capitólio por vândalos inspirados, incitados e aplaudidos pelo próprio Presidente. Viu o vídeo da festa que Trump deu para assistir com os amigos ao assalto pela televisão? Viu a música alta, os copos na mão e gente a dançar?

A história da invenção do “filtro embutido” serve para dizer que Hamilton conhecia a natureza humana. Durante anos, Trump fez uma “corte obsequiosa” ao povo e “acabou como tirano”. Dois séculos depois, a imagem assenta-lhe como uma luva.

Há anos que Trump dedica energia e dinheiro a fazer “obséquios” e “amabilidades” ao povo, a dizer o que as pessoas querem ouvir, a dar colo quando defendem coisas chocantes e até criminosas. Fê-lo até ao fim: na quarta-feira, já os seus fãs destruíam portas e janelas, forçavam a entrada no Capitólio, vandalizavam e divertiam-se de forma selvagem nas salas do Senado e da Câmara dos Representantes, atacavam a polícia com barras de ferro e tasers, disparavam gás lacrimogénio — um homem foi preso com uma arma semiautomática e 11 “cocktails Molotov” — roubavam máquinas e documentos dos gabinetes (está a ser avaliado se estes roubos põem em causa a segurança nacional) etc, e Trump ainda lhes diz: “We love you, you are very special.”

São especiais, de facto: não tinham polícia à espera e invadiram o Capitólio com desarmante facilidade. Estiveram tanto tempo à solta no edifício que uns deitaram-se no chão a fazer telefonemas, outros tiraram fotografias, relaxaram as pernas em cima das mesas e experimentaram cadeiras. Alguém perguntou — e bem — quanto tempo teria sobrevivido um negro amotinado que se tivesse sentado na cadeira do presidente do Senado americano? Quantos segundos até levar um tiro?

Pelo caminho, o busto de Zachary Taylor ficou manchado de sangue. Pobre Presidente Taylor. Irrelevante, é conhecido por duas coisas: ter sido um general eficaz a matar mexicanos e ter inspirado uma teoria da conspiração incipiente. Morreu em 1850, poucos meses após ter tomado posse como Presidente e os rumores de que fora envenenado por sulistas esclavagistas foram imediatos. Daí a nascer uma tese de assassinato foi um ápice. As dúvidas só ficaram esclarecidas em 1991, quando os restos mortais foram exumados e se verificou que não havia sinais de arsénio no cabelo, unhas e tecidos analisados.

Na tese das eleições roubadastambém não há nem sinais nem provas. Mas os conspiracionistas que invadiram o Capitólio acreditam que Trump ganhou e não haverá exumação que os convença do contrário. E, ao contrário de Taylor, que lutou pela união da União, terão por muitos anos o seu herói a dizer-lhes que são especiais.

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