O maior perigo da “campanha contra Portugal”

Levada às últimas consequências, a acusação de António Costa a Paulo Rangel, Miguel Poiares Maduro e Ricardo Baptista Leite condiciona a liberdade de expressão. Pensar e expor ideias contrárias às do Governo passaria a tipificar um crime de lesa-pátria.

A vida não está fácil para o primeiro-ministro. Ter de decidir no prazo de dias se o país volta ao confinamento geral para evitar a escalada da pandemia faz parte de um leque de escolhas que nenhum governante gostaria de tomar. Só este momento de terrível ansiedade e pressão pode explicar a acusação que fez a Paulo Rangel, Miguel Poiares Maduro e Ricardo Baptista Leite, dizendo que as suas críticas à nomeação do representante do país na Procuradoria Europeia provam, nem mais, nem menos, a sua liderança de uma “campanha internacional contra Portugal”.

A acusação é grave porque revela um conceito muito limitado do que é a divergência política no espaço democrático. Porque se sustenta na criação de preconceitos que privilegiam o seguidismo e a obediência em detrimento do debate aberto. Porque, sublinhando todas as diferenças, nos faz regressar a tempos em que os que protestavam na Europa contra Salazar eram apelidados de antipatriotas pelo regime – lembremo-nos a propósito das acusações feitas a Mário Soares. Levada às últimas consequências, a acusação de António Costa condiciona a liberdade de expressão. Pensar e expor ideias contrárias às do Governo passaria a tipificar um crime de lesa-pátria.

É normal que o primeiro-ministro fique incomodado com os estilhaços de uma polémica que chegou à imprensa europeia e ofuscou o brilho da inauguração formal da presidência portuguesa do Conselho. É evidente que as suspeitas de ingerência do Governo numa nomeação judicial causam danos à imagem do país. Mas esses supostos custos decorrem da democracia. Existem em todos os países onde há liberdade de expressão e de imprensa. No final, a pressão do escrutínio, da crítica, e a exposição livre do julgamento político que se faz do Governo não prejudicam o interesse nacional: pelo contrário, ao forçarem a transparência e a responsabilidade do Governo, protegem o bem comum.

Por muito que António Costa queira proteger a sua ministra e esvaziar a história das nomeações, o que é facto é que a sucessão de opções e o corolário lógico da carta enviada a Bruxelas para as sustentar são merecedores de perguntas, de escrutínio e de críticas – o PÚBLICO revelou as suas neste espaço. Entre as teses do Governo e as denúncias de pessoas do PSD, os cidadãos hão-de fazer o desconto aos interesses partidários e formar a sua opinião. Seja qual for a conclusão a que cheguem, não podem ser divididos entre patriotas e antipatriotas. Revelem-nas aqui ou em Bruxelas, não devem ser acusados de campanhas contra Portugal.

Custa a entender que António Costa questione estes princípios básicos. Para nosso descanso, acreditemos que se tratou de um lapso decorrente da pressão da covid-19.

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