Saúde mental: a Rumo dá resposta aos silêncios que os estudantes portugueses encontram lá fora (e não só)

A plataforma online, fundada por Francisco Valente Gonçalves e Carolina Oliveira Borges, surgiu para dar resposta aos estudantes portugueses no estrangeiro que procuravam apoio psicológico sem barreiras culturais. A pandemia trouxe outros utentes à Rumo, mas o foco é o mesmo.

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Um português e um inglês partilham um momento de silêncio. Esse instante de quietude terá significados distintos para ambos — “há uma gap [lacuna] cultural de trabalho com emoções”, diz Francisco Valente Gonçalves, de 32 anos. Experienciou-o durante o doutoramento em Psicologia e Criminologia na Universidade de Leicester, Inglaterra. A maior barreira não era a linguística, mas antes a cultural. “Com a minha counselor, que era inglesa, sentia que não havia disponibilidade da parte dela para estar em silêncio. Ela achava que era estranho, mas eu estava pacífico em silêncio”, conta.

Durante os anos passados no Reino Unido, o agora psicólogo forense da Costa da Caparica reparou que outros colegas da “diáspora académica portuguesa” e “de outros países” sentiam o mesmo. E isso intensifica-se quando estudantes no estrangeiro procuram apoio psicológico no país que os acolhe. Não havia, em 2015, “grupos ou colectivos” que respondessem às necessidades destas comunidades. Por isso, nesse mesmo ano, teve uma ideia que materializou com Carolina Oliveira Borges, psicóloga clínica e da saúde, também de 32 anos: a Rumo, uma plataforma online que permite a quem precisa “conectar-se com terapeutas de saúde mental a qualquer hora”. A primeira sessão é grátis. Para marcá-la, basta efectuar o registo no site, seleccionar um terapeuta, escolher o dia e a hora e preencher alguns detalhes. Cada consulta tem a duração de 50 minutos e o pagamento faz-se online. À parte de Carolina e Francisco, co-fundadores da Rumo, a plataforma conta com 14 psicólogos e psicoterapeutas. “Na primeira consulta, tentamos perceber se podemos ajudar ou não. Caso não consigamos, reencaminhamos para outros colegas ou para o Serviço Nacional de Saúde”, salientam.

A Rumo arrancou, “mais formalmente, no final de 2016”, pronta para prestar auxílio à comunidade emigrante. “Surgiu pela necessidade de haver essa resposta, com o foco na cultura e na língua. Compartilhar língua e cultura com um profissional potencia o apoio psicológico”, explica Carolina. A lisboeta também conhece a realidade de se estar sozinho no estrangeiro: fez Erasmus em Valência, Espanha, e estagiou, durante oito meses, em São Paulo, no Brasil. Mas esse “nicho mais definido” foi-se ajustando — principalmente em 2020. “Com a pandemia, as necessidades foram outras. O foco continua o mesmo, mas actualmente temos clientes em Portugal com a terapia online”, explica a psicóloga. E o número de consultas aumentou quando a Rumo passou a disponibilizar os seus serviços a “toda a gente”. “Tivemos de ouvir o mercado. Havia mais gente a querer os nossos serviços e chegámos à conclusão de que a nossa missão é flexível e ajustamo-nos”, completa Francisco.

O reposicionamento da Rumo reflecte a solução que várias instituições, autarquias e projectos encontraram no meio virtual para continuar (e reforçar) o acompanhamento psicológico ao longo da pandemia. Para além do apoio psicológico na Linha SNS24, abriram-se outras alternativas: a Casa do Impacto, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, criou a plataforma acalma.online; várias autarquias criaram linhas de apoio telefónico para apoiar os seus munícipes. Serviços de apoio psicológico (e até estudos) no contexto pandémico também surgiram nas universidades, como é o exemplo das do Porto, Évora, Minho ou Lisboa

Este problema não é de agora

De acordo com a notícia da Lusa, publicada pelo P3 em Março de 2020, os estudantes da Universidade do Porto recorriam à linha de apoio psicológico lançada pela instituição, “sobretudo” por motivos como a “ansiedade, medo, receio de contágio, solidão e tristeza”. Esses serão também motivos para alguns dos investigadores que, ao longo da pandemia, agendam consultas na Rumo, mas não só. Em parte, porque “os académicos da diáspora” podem experienciar “um isolamento, voluntário ou não”, por estarem, muitas vezes, sozinhos. Com a pressão da investigação (e consequente pausa ou atraso devido à pandemia), “também pode haver impacto na auto-estima”. “Isto pode desencadear uma série de outros processos, é um cocktail de mal-estar que esta pandemia veio intensificar”, sintetiza Carolina. Para Francisco, não se discute “tanto quanto se deveria” o tema da saúde mental no seio académico.

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Raquel Ferreira Santos, Francisco Valente Gonçalves, Inês Gaspar, António Tavares, Rosa Castro André e Carolina Oliveira Borges. DR

E alguns estudos — publicados antes do início da pandemia — mostram que este não é um problema de agora. No Reino Unido, a Insight Network (uma plataforma de psicólogos e psiquiatras que presta apoio psicológico) e a Dig-In (empresa de marketing que actua no sector universitário) colaboram, desde 2017, para publicar um estudo anual relativo à saúde mental dos estudantes universitários.

O estudo publicado em 2020 contou com respostas de mais de 21 mil alunos de 140 universidades britânicas. Segundo o documento, um em cada cinco estudantes tinha, na altura, um transtorno de saúde mental diagnosticado; por outro lado, mais de um terço da amostra disse “ter experienciado um problema psicológico sério” que justificou a procura de ajuda profissional. Em 2018, por cá, o inquérito Estigma em Saúde Mental revelou que 66% dos alunos de doutoramento e mestrado que responderam conheciam alguém com um problema de saúde mental; ao mesmo tempo, “entre os estudantes que estão a tirar uma licenciatura ou um mestrado, mais de metade não tem nenhum amigo ou colega nesta situação (cerca de 55%)”. 

“A academia é um sítio onde tens de mostrar que estás bem, mentalmente são” — e “é muito difícil estar sempre sem pressão”, aponta Francisco. Da parte que toca à Rumo, Carolina indica que, nas sessões, “a malta académica surge com questões ligadas à desesperança e ao cansaço”, bem como à síndrome do impostor. E, “muito obviamente, a esta ideia de não se poder falhar”. A psicóloga diz existir um factor transversal a muitos dos estudantes a quem dá apoio psicológico: o doutoramento “como objectivo de vida”. “Depois, quando se chega a uma fase final ou quando é para entregar a tese, o poder ou o valor desse objectivo está cheio de ruído, fica mais frágil”, acrescenta. Mesmo durante a fase de escrita da tese, “há alunos que querem ver-se livres [do doutoramento]”, devido à pressão e ao estilo de vida, “que pode ser bastante limitado”. “Fica a ideia de que quanto mais depressa saírem do doutoramento, mais depressa ficam ‘saudáveis’”, diz o co-fundador da Rumo. 

A hierarquia é um problema?

Mas também há estudantes e investigadores que não experienciam “um sentimento de pertença real” — em parte porque “o meio académico é um dos mais hierarquizados”. Existem ainda outros motivos “não tão falados”, como “a discriminação das minorias”. “Há membros que não sentem fazer parte porque existe bullying, intimidação, assédio, racismo, xenofobia. São problemas reais, tanto quanto os problemas de saúde mental, mas não são tão falados nem expostos. Nestes casos, a saúde mental fica ainda mais prejudicada”, frisa Carolina. 

O estudo Joy and Stress Triggers: A global survey on mental health among researchers (Gatilhos de alegria e stress: uma pesquisa global sobre saúde mental entre investigadores, ​numa tradução livre para português), da Cactus Foundation, permite uma leitura mais recente sobre o tema. Afinal, “uma grande proporção do período de pesquisa deu-se durante a pandemia da covid-19”. De acordo com o estudo, quase 50% dos investigadores que responderam (um total de 13 mil, espalhados por mais de 160 países) indicou que “o ambiente académico em que trabalharam os inspirou a trabalhar em prol dos seus objectivos de investigação”. Muitos falaram “do apoio dos seus pares”, mas notaram existir uma menor sensação de inspiração e apoio por parte das posições de liderança.

Quanto ao tempo dedicado ao trabalho, o estudo aponta que “investigadores que trabalham em ambiente académico foram mais propensos a reportar trabalhar para lá de 50 horas por semana (32%)”. Para além disso, 65% disseram ter sentido “tremenda pressão para publicar papers” ou completar projectos. Junta-se a isso o facto de 37% da amostra ter “experienciado ou estar a experienciar” discriminação, assédio ou bullying. De 13 mil investigadores, quase metade disse não falar sobre “sentimentos de stress ou de ansiedade relacionados com o trabalho” com “pessoas relevantes” ou “autoridades” no local de trabalho. Isto porque essa vulnerabilidade poderia “não ser levada a sério” e porque “estes sentimentos eram parte da vida académica” — o que muitas vezes “impediu os investigadores de procurarem ajuda profissional”.

O problema da saúde mental dos académicos sempre existiu e vai existir. É preciso haver uma reflexão por parte das universidades, ouvir as necessidades das pessoas, trazer especialistas”, nota Francisco. A existência de um “espaço onde as pessoas pudessem falar sem haver um prejuízo por isso” pode ajudar a diminuir a distância que separa “a base do topo”, explica Carolina. Assim, a título de exemplo, um estudante poderá falar com o seu orientador apenas sobre trabalho, mas deverá ter “pontos de contacto distintos” se “precisar de falar de outra coisa” — ou desabafar. Para além disso, Francisco defende ser necessário “promover a cultura do bem-estar e integridade” nas academias: “Devo ter a possibilidade e sentir-me confortável para dizer ao meu supervisor algo como: ‘Hoje não vou, não me sinto bem.’” Apesar de tudo, afirma, esta é uma “questão cultural”. Mas é preciso que “as universidades conheçam quem têm dentro das suas portas”. Porque, como explica Carolina, a saúde mental “tem impacto na própria produção de ciência” — e isso “influencia a própria sociedade”.

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