Se a bicicleta faz parte dos teus planos para 2021, então este filme é para ti

Depois de ter vencido dois prémios no CineEco de 2020, em Seia, Nuno Tavares disponibilizou o seu documentário de estreia, A Alma de um Ciclista, no Vimeo.

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Atenção, “este não é um filme sobre ciclismo ou sobre bicicletas”. O alerta pode parecer estranho – e tem o seu quê de spoiler, quando nos sentamos para ver um documentário chamado A Alma de um Ciclista –, mas é isto mesmo que o realizador Nuno Tavares quer que saibamos, logo à partida. Ainda que, logo à partida – e aqui assumimos nós que contar dez segundos de um filme não estraga nada a ninguém – seja sobre um ciclista, e sobre a sua paixão pelas bicicletas clássicas que o filme, que foi entretanto disponibilizado no Vimeo, comece por nos falar. 

Do que aqui se fala é de uma primeira obra, auto-financiada por um empresário do turismo que, chegado aos 40 anos, não planeou uma volta ao mundo a pedalar, mas decidiu que queria alimentar a paixão pelo cinema, e tentar fazer os seus próprios filmes. Estudou para isso – em casa, para poder continuar o seu trabalho – e testou o que sabia com um filme sobre os pais, que não mostrou ao mundo. Mas a segunda obra, que, para todos os efeitos, é a sua primeira incursão a sério, passou pelo Festival de Cinema Ambiental da Serra da Estrela, o CineEco, em Outubro, em plena pandemia, e não escapou à atenção do júri principal, que lhe deu o Prémio Camacho Costa - Lipor, e do júri da Juventude, que lhe atribuiu o Prémio da Juventude para a Melhor Longa em Língua Portuguesa.

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Para ver no Vimeo

Para arranque, o açoriano, que deixou São Miguel para estudar e trabalhar em Lisboa, não podia pedir melhor. Até porque para trás estavam já seis meses perdidos, com o filme pronto e parado em casa, por causa da covid-19. Aliás, é por perceber que será difícil, nos próximos tempos, levar A Alma de Ciclista a pedalar pelo país, em salas de cinema, que o realizador decidiu, ao fechar 2020, disponibilizá-lo para aluguer no Vimeo,  permitindo-nos, na intimidade do sofá, entrar na intimidade das suas personagens e desde logo na relação que Artur Lourenço – lisboeta, fotógrafo, mentor do ciclo-clube A Clássica, que mantém um blogue homónimo – desenvolveu com estas máquinas. Que, inventadas no século XIX, foram quase sempre usadas em competição, mas continuam, no geral, a convidar-nos a um passeio lento, pelo correr dos dias.

O filme começa por ser um regresso à infância de Lourenço – e à Vilar vermelha que o pai lhe ofereceu, num dos dias mais felizes da sua vida. E, neste aspecto, é também o regresso à infância de muito do seu público, que terá sentido, nas pernas e na alma, essa sensação de liberdade primordial, algures lá atrás, nas primeiras curvas da vida. Uma liberdade perdida para um dia-a-dia apressado, no qual algumas pessoas, como aquelas que Artur Lourenço, e o filme, nos vai apresentando, formam um pelotão em contracorrente que, em vez de perseguir o tempo, esse fugitivo, preferem passear-se lentamente, às vezes monte acima, o que também custa, em busca da felicidade que se consegue obter no simples acto de pedalar, de respirar ar puro, e de o fazer com amigos.

Um veículo para chegar a uma história

É por isso que o realizador insiste que este filme é mais sobre a amizade, e sobre um certo minimalismo que nos religa à natureza, do que sobre bicicletas. Que foram simplesmente, assume, um veículo para chegar a uma história. “Eu não sou ciclista, e esse olhar exterior ao meio parece-me importante para o que acabei por fazer”, explica ao P3 o autor que, tal como Vittório de Sicca, no aclamadíssimo Ladrões de Bicicletas (Ladri di Bicicletti, de 1948), usou do próprio dinheiro para fazer o filme que queria, no tempo que tinha disponível. 

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Para além da bicicleta, Artur Lourenço anda sempre com uma câmara. DR

A diferença é que o italiano fê-lo depois do fracasso estrondoso do seu filme anterior, enquanto o português se limitou a não passar pelo calvário de, neófito, tentar, em Portugal, conseguir fundos dos programas de apoio ao cinema. Poupou-se a cabelos brancos, e, enquanto o produtor que também foi, investiu o que tinha para contratar uma equipa que lhe garantisse a qualidade que se exigia. A direcção de fotografia de Carlos Isaac sobressai e Nuno Tavares assume que o seu “contributo foi muito importante para o resultado final”, tal como a montagem de Francisco Costa e a direcção gráfica de Carolina Castro Almeida.

À espera de concurso internacional

Agora, enquanto espera que ainda em Janeiro lhe cheguem notícias do concurso internacional que avaliará 55 filmes premiados em vários festivais de cinema dedicados ao ambiente de todo o mundo, Nuno Tavares aguarda que o novo coronavírus dê tréguas para que A Alma de um Ciclista possa rodar em sala, entre nós. Mais do que ganhar dinheiro com bilheteiras, coisa que o não preocupa, assume que “gostava de criar um ambiente tertuliano à volta do filme”. E, repete, sempre que os jornalistas o abordam, o quanto o surpreendeu que, por ver esta sua obra de estreia, muitas pessoas lhe tivessem confessado uma enorme vontade de pegar numa bicla, e começar a pedalar. 

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Neste aspecto, não sendo um filme sobre o ciclismo urbano – nem sobre as guerras que hoje opõem aqueles que buscam mais espaço para pedalar na cidade aos que recusam cedê-lo –, este documentário não deixa de ser um apelo à mudança de atitude, numa altura em que estamos pressionados, por razões ambientais, a mudar a forma como nos deslocamos nas cidades, tornando-as mais amigas das bicicletas e da mobilidade suave no geral. E é também um documentário sobre economia circular, e sobre o amor pelas clássicas, objectos que nunca acabam, mas que se podem reconstruir, peça a peça, ao longo de uma vida. Resta saber se, depois de veres a Alma de Um Ciclista, te vais querer juntar ao pelotão.

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